Mike El Nite: o rapper que nasceu duas vezes

Sempre se sentiu no meio. "Nem era beto nem mitra, não era rico nem pobre. Sempre ali no q.b." Sente-se uma ponte entre duas gerações, entre os que vieram antes, como Sam the Kid e Regula, e os que vêm depois, como os GrogNation.

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Miguel Caixeiro andou pelo rock agressivo e pelo nu-metal; descobriu o hip-hop com Eminem e Mind Da Gap, redescobriu-o com Odd Future e A$AP Rocky NUNO FERREIRA SANTOS

Ouviu-se o conjunto todo. O som alinhado com as produções dos Odd Future ou de A$AP Rocky, e os versos que juntam em fluxo de consciência, pelo prazer de brincar com a linguagem em associação livre, referências da cultura pop, dos videojogos, da Internet ou da bola. Quando foi lançado Mambo nº1, Mike El Nite revelou-se. “Foi um boom incrível na minha vida. Passei de ninguém saber quem eu era para ser conhecido de quase toda a gente na comunidade hip-hop."

O vídeo não foi exibido em horário nobre num canal televisivo, não teve airplay massivo numa rádio comercial de cobertura nacional. Foi estreado no canal YouTube do site Hip-Hop Sou Eu. Nessa altura, em Dezembro de 2013, tinha cerca de 40 mil subscritores. Hoje tem 70 mil e Mambo nº1 já conta perto de 300 mil visualizações. “Por causa de YouTube, Facebook, SoundCloud e todas essas plataformas que permitem a uma pessoa em casa expor-se ao mundo, os movimentos independentes têm uma voz que não tinham antes. Podem ganhar muita força”, diz o homem nascido em Lisboa na recta final dos anos 1980.

Miguel Caixeiro nasceu duas vezes. A primeira quando, miúdo até então alimentado pelo rock agressivo de System of a Down e Offspring ou pelo nu-metal dos Limp Bizkit, ouviu o Marshall Mathers LP de Eminem e o Sem Cerimónias dos Mind Da Gap. Estava na escola preparatória, no quinto ano, e deixava de parte o rock. “Passei a ouvir só hip-hop e a perceber que tinha perdido muita coisa. Comecei a andar para trás. Tive a noção de que havia um mundo inteiro que tinha de descobrir”. Improvisou rimas, gravou faixas. Entretanto, desapareceu de cena. Um caso nebuloso. “Disse o nome de um bairro social ao lado de onde morava em Telheiras. Viviam lá pessoas que eram minhas amigas e disse-o para representar positivamente a cena." Disse-o, mas não foi bem compreendido. “O que é que sabes da nossa vida? Não és pobre, não passas dificuldades”, ripostaram-lhe enquanto o encostavam à parede. “Senti que não me identificava com aquele comportamento agressivo, que não queria fazer parte daquela cultura." Junte-se ao encosto desagradável o estado do hip-hop à época: “50 Cent, o Lil Wayne a aparecer… O rap estava a passar por um momento muito mau, sem conteúdo nenhum. Era só dinheiro, gajas, tiros."

Agora era a vez de Miguel Caixeiro pôr de parte o hip-hop. Momentaneamente. Faltava-lhe nascer pela segunda vez.

A voz

Mike El Nite. Barba crescida a decorar o rosto, óculos de massa, calças de fato-de-treino com o emblema do Benfica junto ao bolso. 26 anos. Nele, a memória dos fundadores portugueses do hip-hop é difusa. É demasiado novo para ter sido exposto directamente à explosão proporcionada pelo Rapública – tinha cinco anos quando o primeiro CD oficial do hip-hop português foi editado –, mas, quando se apaixonou pela expressão nascida em Nova Iorque no final dos anos 1970, procurou-a em Boss AC, nos Mind da Gap ou no CD autografado dos Black Company que certo dia os pais lhe trouxeram para casa e a que ele inicialmente não prestou grande atenção. “Sinto-me uma ponte entre duas gerações”, dirá. Está entre os que vieram antes, como Sam the Kid e Regula, que “já estavam na ribalta” quando começou (“A minha ambição era chegar ao nível deles”), e os que vêm depois, como os GrogNation também em foco nestas páginas. “Estou no meio e sempre me senti um bocado assim na vida. Nem era beto nem mitra, não era rico nem pobre. Sempre ali no q.b. O q.b. é o segredo”, sorri.

Num dia de Verão de 2006, Miguel Caixeiro viu os Daft Punk no Sudoeste. A reacção que lhe provocou o concerto do duo francês é descrita de forma sucinta: “Fiquei maluco com aquilo." Não só com aquilo, com a música, mas com o que a envolvia. “Não tinha um comportamento associado. Ou melhor, tinha, mas não te exigia que fosses de determinada maneira. Qualquer pessoa podia ouvir e gostar." Durante uns anos, Mike El Nite navegou águas da electrónica. Criou com Tiago Pereira os Refill, trabalhou com a antiga colega de escola Da Chick, que acaba de se estrear com Chick to Chick. O hip-hop continuava a fervilhar no subconsciente. “Fui à procura de elementos para o hip-hop dentro da electrónica”. Reparou nos franceses Justice, “que tinham qualquer coisa no groove deles que era muito funky”, constatou que os alemães Modeselektor “utilizavam sons de hip-hop, com aqueles seus baixos muito tecno”, mergulhou no dubstep e, nele, tudo parecia “remeter muito para o hip-hop”. Até que chegou até ele uma voz.

Desbocado, aparentemente amoral e, por isso mesmo, chocante. Contador de histórias totalmente do seu tempo, ou seja, autor de narrativas fragmentadas, torrenciais e distorcidas, reflexo da informação e dos estímulos com que somos bombardeados diariamente em todos os ecrãs que nos rodeiam. Criador de música que apontava um novo caminho. “Só tive o flash do rap outra vez quando ouvi Tyler The Creator”, recorda Guiado pelo autor de Goblin, investigou todo o colectivo em que este se revelou, os Odd Future, entusiasmou-se com outro nome recente, o rapper nova-iorquino A$AP Rocky. “As pessoas estão sempre a fechar as coisas em caixas, e depois há aqueles que, do nada, saem da caixa. Gosto disso, dos que saem da caixa e põem as coisas noutra perspectiva." Neles, Miguel Caixeiro redescobriu-se. “Trouxeram aquilo que eu acho que deve ser a cena verdadeira no rap: não interessa do que estás a falar, interessa que tenhas skill de rap e que a música seja boa; interessa que divirtas as pessoas com as palavras, com os malabarismos das palavras."

Eis então Miguel Caixeiro a nascer novamente. Seu nome: Mike El Nite – culpa do Michael Knight da série O Justiceiro, do seu desejo de ter um nome com três sílabas, “que funcionam sempre bem no hip-hop” (“E-mi-nem, Doc-tor-Dre, Sam-the-Kid”), e do cigarro, “nite” em calão, que tão rapidamente se apaga, metáfora da “efemeridade da vida”.

Voltou ao hip-hop ao co-assinar em 2012, com NoFake e Marsemellow, entre outros, a mixtape Trocadalhos do Carilho. Depois, no final de 2013, chegaram Mambo Nº1 e o EP respectivo, Rusga para um Concerto em G menor, o primeiro que assinou para a editora, a Astro Records, que, muito de acordo com a tradição hip-hop, é também a sua crew. Porque Mike El Nite não está sozinho. Num estúdio montado num quarto andar em Alcântara, que é a casa do rapper Vilão e o quartel-general da editora, encontram-se regularmente nomes como ProfJam, Recalot, Baked Donuts, Vácuo, Blink ou Phoenixx. “Mais do que um estúdio de gravação, é um sítio onde nos reunimos, onde falamos, onde pensamos ou bebemos uma cerveja. Mais cabeças a pensar, mais ideias mais processos”, descreve. “Temos todos perspectivas musicais diferentes, mas encaixamo-nos bem. Estamos a partilhar vida e partilhamos também isto: todos gostamos de rap e todos queremos ser rappers de profissão."

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NUNO FERREIRA SANTOS

No momento em que edita o segundo EP, Vaporetto Titano, título e conceito inspirado no tempo perdido a ver emissões de televendas, já o conhecemos. Filho da cultura google e dos vídeo-jogos, mas ainda com formação precoce em televisão e VHS, afirma: “hoje em dia quase não se cria nada, mistura-se: everything is a remix, como se diz”. Na sua música, cruzam-se referências de forma inesperada (Guerra das Estrelas e Carlos Paião lado a lado), e o português polvilha-se de forma natural com expressões em inglês. “Sou um Peter Parker sem a spider bite/Ou um Jimmy Page, mas sem stage fright”, define-se na óptima Ye rite que encontramos em Vaporetto Titano.

Mike El Nite é também, e antes disso, filho de Joaquim Caixeiro, um dos fundadores da Brigada Vitor Jara, voz de Pezinho da Vila que, hoje, numa reviravolta inesperada, conhecemos pelo alter-ego Quinzinho Portugal, figura conhecida da música dita pimba. Dele ficaram a infância rodeada da música de intervenção de José Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, e a influência desse activismo. Ficaram também o humor e o gosto pelo sarcasmo (refere Monty Python, Southpark e os Gato Fedorento). Olha a noção de “real”, tão cara ao hip-hop, com ambivalência. Ou melhor, sem purismos impossíveis. Adepto da vida quotidiana sobre o selim, é muito sério na defesa da bicicleta como meio de locomoção privilegiado (até lhe dedica uma canção de intervenção, Ride a bike). Porém, recusa a ideia de uma genuinidade impoluta e, quando insulta Angela Merkel ou quando chama “badalhoca” à União Europeia, não se coloca numa posição de superioridade moral – “Estamos todos envolvidos e, dado que as pessoas não fazem nada, então também estão envolvidas na badalhoquice."

“Eu também sou real, também falo das minhas vivências. Mas um artista tem de ter um lado de actor e tem de haver um acto de performance. Sou o que sou e não pretendo ser mais do que isso. É a minha cabeça e são os meus sentimentos. Deixem-me extravasar à vontade. Eu é que sei o que é o rap? Não, toda a gente tem a sua visão e essa diversidade é que é bonita."

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