Dupla Rui Chafes e Vera Mantero na Bienal de São Paulo
O anúncio oficial será feito esta tarde, às 18h, no Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, com a presença dos dois artistas, do secretário de Estado da Cultura, José Amaral Lopes, do director do Instituto das Artes, Paulo Cunha e Silva, e do comissário da representação nacional, o crítico e ensaísta Alexandre Melo.
Não é a primeira vez que a deslocação ao evento (o segundo mais antigo do género, depois de Veneza, e um dos mais conceituados) é feita a dois, mas é a primeira vez que se fazem cruzar áreas, convocando autores de disciplinas distintas para a criação de uma obra comum: houve "uma intenção de apresentar uma participação com um efeito-surpresa, que proporcionasse algo de inesperado, sendo que, aqui, o inesperado remete para o reforço da dimensão transdisciplinar que eu considero uma das características essenciais da arte contemporânea", explicou ontem ao PÚBLICO Alexandre Melo.
Mais conhecido internacionalmente como crítico e ensaísta ligado às artes plásticas, Alexandre Melo tem também um corpo de trabalho teórico ligado à dança, tendo, aliás, colaborado como dramaturgo em trabalhos, por exemplo, de Francisco Camacho ("Dom São Sebastião" e "My Name is Wilde..."). A sua ligação à obra tanto de Chafes como de Mantero é antiga, remontando ao inicio das carreiras dos dois artistas.
"Conhecendo bem o trabalho destes dois autores, acho que há nas suas obras pontos de contacto, hipóteses de diálogo e complementaridade que me levaram a imaginar não só como possível mas muito auspiciosa a sua reunião. Podemos dizer que a escultura do Rui Chafes nos propõe muitas vezes lugares de corpos ausentes enquanto as coreografias da Vera, principalmente os solos, podem ser vistas na perspectiva da dificuldade da presença do corpo. Entre esta presença impossível [Chafes] e esta presença incómoda [Mantero] há amplas hipóteses de trabalho", explica.
Desde que o convite surgiu, a 23 de Dezembro, os dois artistas, que apenas vagamente se conheciam, têm estado, nas palavras de Vera Mantero, "numa revisão das respectivas matérias". Cada um conhecia "melhor" os trabalhos mais antigos do outro e "menos bem" os mais recentes, mas a admiração é recíproca, interceptando-se, como o pensar de ambos, no domínio da depuração. Para Mantero, Chafes é um artista com uma força inusual que "está completamente dentro do seu mundo, sem vacilar", e uma obra "extremamente rica, pensada e depurada". Para Chafes, Mantero detém um corpo de rara "pureza técnica", conseguindo imprimir às suas criações "um sentido de depuração visual e espacial, que reduz todas as actuações a um imenso dramatismo contido."
Meio carne, meio ferroDepois de um encontro inicial, a seguir ao Natal, em que se estabeleceu "o que não fazer", os dois artistas, impossibilitados de se encontrarem (Mantero tem estado a trabalhar em Paris, no Thèâtre de la Bastille), têm vindo a manter uma correspondência intensa.
Mantero, que confessa que hesitou em abraçar o projecto - tinha planeado um "ano sabático", dedicado à pesquisa e reflexão -, explica que o diálogo rapidamente se tornou para ela "muito entusiasmante": "Há partes dos nossos trabalhos que são muito diferentes, mas há qualquer coisa na ordem da possibilidade de transformação da arte, da sua capacidade de nos transportar para um nível que não o da funcionalidade do quotidiano em que nos encontramos", explica.
Apesar de o trabalho estar ainda numa fase embrionária e, por isso, nenhum dos dois artistas poder, para já, especificar que forma concreta esta colaboração assumirá, à partida, segundo Chafes, deverá ser uma ou várias peças feitas para o corpo de Mantero - resultando numa presença, diz a coreógrafa, "meio carne, meio ferro, meio orgânica, meio máquina" que nunca estará completa sem a sua presença. A acompanhá-las haverá provavelmente também um vídeo de uma actuação em que Mantero trabalhará com as esculturas a expor. É a síntese das duas mais evidentes hipóteses de colaboração (Chafes fazer uma peça para uma coreografia de Mantero ou a bailarina e coreógrafa fazer uma peça para uma escultura de Chafes).
"A ideia da apropriação de um corpo no meio do ferro ou do desenho não me é de todo estranha", explica Chafes. Também em trabalhos desenvolvidos a dois, com Orla Barry, o artista tem explorado as duas situações: a escultura "Unsaid" (2001) inclui textos e a voz da artista irlandesa e é sobre o seu corpo que no documentário de João Trabulo, "Durante o Fim", Chafes desenha. Há já algum tempo que está prevista a realização de um filme entre Chafes e Orla Barry, projecto que, de alguma forma, contém alguns dos princípios do trabalho que Chafes agora desenvolverá com Mantero - para esse filme o artista deverá desenhar esculturas para o corpo de uma actriz, que será filmada na costa irlandesa a enterrá-las na areia de forma a que o mar acabe por as arrastar.