Beyoncé expõe-se mas só mostra o que ela quer que vejamos
As audiências televisivas subiram no fim-de-semana passado nos EUA. Razão? O documentário Life Is But A Dream, de e sobre Beyoncé, retrato autobiográfico, onde a cantora pela primeira vez mostra dimensões da sua vida privada.
Há exactamente dez anos, entrevistámos Beyoncé em Berlim, estava ela a lançar o primeiro álbum a solo, depois das Destiny’s Child, e a iniciar a relação afectiva com o futuro marido, Jay-Z. Durante quarenta e cinco minutos, numa viagem de carro entre um hotel do centro de Berlim e o aeroporto, conversámos sobre os mais diversos assuntos e, em todas as suas respostas, havia uma divisão nítida entre vida privada e vida profissional.
Beyoncé tem 31 anos. Começou a pisar palcos aos 7 anos. Desde os 14 anos, com as Destiny’s Child, que aquilo que faz gera interesse. Nela, a ficção mistura-se com a realidade. Às tantas, em final de conversa, perguntámos-lhe se quando era mais nova sonhava em ser famosa e se a fantasia era diferente da realidade.
A sua resposta, mais uma vez, aludia à dualidade privacidade versus figura pública e à dificuldade em equilibrá-la: “Bem, não sonhava ser fotografada quando estou no parque a comer gelados. Compreende? Estar nesta posição é melhor do que se possa imaginar, mas também é mais duro do que se possa imaginar.”
Nos últimos dez anos, transformou-se provavelmente na maior celebridade pop do nosso tempo. É difícil pensar numa outra personalidade que se tenha imposto de forma tão concludente na última década como cantora e performer, um ícone que tranquiliza, sem deixar de afirmar a sua personalidade, inclusive junto do casal presidencial que habita na Casa Branca.
E, no entanto, ao contrário, por exemplo, de Madonna, sempre fez uma separação nítida entre a exposição pública e a vida privada. E o que é mais curioso é que isso tem sido feito, aparentemente, com a maior das simplicidades. Até agora, na altura em que resolveu abrir as portas de algumas dimensões da sua privacidade, o faz com naturalidade.
Foi no fim-de-semana passado. O canal de televisão HBO transmitiu um documentário de hora e meia sobre Beyoncé chamado Life Is But A Dream. Não era um documentário qualquer. Foi co-realizado pela própria (com a ajuda de Ed Burke, que a tem filmado ao longo dos anos), para além de ser a produtora executiva e a co-argumentista do projecto. É como se tivesse chegado à conclusão de que a melhor forma de mostrar o seu lado mais humano era ser ela própria a decidir o que revelar.
Aparentemente, havia muita gente com vontade de saber mais sobre ela, tendo o canal registado uma audiência de 2 milhões de espectadores, o melhor resultado do HBO nos últimos dez anos. Na noite de sábado, foi recebida por Oprah Winfrey, para uma entrevista exclusiva, e os números também impressionaram: 1,3 milhões de espectadores. Entretanto, o documentário irá ser exibido em diversos países (para Portugal, ainda não existe data de transmissão), embora seja possível encontrá-lo na Internet.
Tal como há dez anos, talvez até mais ainda hoje, o seu grande desafio continua a ser como equilibrar a vida pessoal e artística. É, evidentemente, um documentário autobiográfico, que foi supervisionado detalhadamente, embora nunca se sinta que estejamos perante uma mera auto-encenação à americana. Acaba por constituir um documento de como se desenrolou a sua carreira artística e a vida pessoal nos últimos anos. Claro que são omissos os focos mais polémicos. A relação com o pai (e, simultaneamente, seu manager e gestor de carreira desde a adolescência) acaba por ser um dos poucos motivos de conflito tenuemente apresentados: ela fala da dificuldade que sentiu ao despedi-lo dos papéis profissionais há três anos, mas não ficámos a saber quais as verdadeiras razões dessa separação.
O crítico e jornalista Jody Rosen, da revista The New Yorker, alude ao facto de outro assunto nunca ser abordado: questões raciais. É verdade. Embora se possa dizer que, para alguém na sua posição, esse não tem de ser um assunto mobilizador a analisar. Essa ausência de assuntos polémicos acaba por ser compensada com outras dimensões, onde vislumbramos uma inesgotável energia, a ética profissional, a forma como utiliza o computador como se fosse um diário pessoal ou um confessionário para onde vai debitando as suas impressões no final dos dias e, sobretudo, a sua magnífica voz.
Há também uma entrevista, feita em ambiente descontraído, que percorre o documentário e que acaba por servir de fio narrativo. Há momentos em estúdio, ensaios meticulosos com os bailarinos e com a sua equipa técnica, vídeos caseiros de situações pessoais na companhia do marido, Jay-Z, a confissão de um momento doloroso (um aborto espontâneo há anos) e imagens de cumplicidade com as irmãs e também com a filha, Blue Ivy Carter.
Desde Janeiro de 2012, quando nasceu, que Blue Ivy era fortemente protegida dos paparazzi. Agora Beyoncé resolveu tornar-se paparazzi de si própria e da sua família, escolhendo o melhor ângulo para o fazer, mostrando imagens da filha no útero e, claro, fora dele. Ou seja, há a humanização da sua figura idealizada, concretizada de uma forma descomplicada, sem histrionismos.
Acabamos por aceder à mulher, para lá de todas as maquilhagens, embora saibamos que vemos apenas aquilo que ela quer que nós vejamos, numa síntese de vulnerabilidade e, claro, de grande entretenimento.