Em O Rei da Evasão, o filme anterior do francês Alain Guiraudie, um homossexual rural cansado dos engates e de ser minoritário chamava a si o papel de apaixonado de uma jovem em fuga. A verdade falaria mais alto. Pode dizer-se que em relação à sexualidade o cineasta também tem sido mestre na evasão, refugiando-se na fantasia. Tem sido assim desde que, depois de Godard ter elogiado o autor do melhor filme de Cannes 2001 (Ce Vieux Rêve Qui Bouge), Guiraudie começou a correr o mundo (de fantasia, de fábula) nos seus filmes. Como um fogo de artifício: não escondendo a angústia, adiando o momento de verdade. Ele acontece agora, frente a um lago, que é mais letal do que o mar. É daí que vem o amor, é daí que vem a morte. Guiraudie, nascido em em 1965 numa família de agricultores, comunista, cinéfilo e autodidacta, imobilizou-se. Não se pode fugir mesmo deste espelho.
As personagens dos seus fimes estão sempre em movimento, dão a volta ao mundo. Em Pas de Repos Pour les Braves (2003) é isso o que faziam, em terras de fantasia do sudeste de França que se chamavam Buenauzeres ou Glasgaud.
É verdade, estão a dar a volta ao sudeste de França, à escala mundial...
Mas em O Desconhecido do Lago estão à espera que algo aconteça, imobilizadas. Como chegou até aqui? Já aconteceu antes no seu cinema: num filme um pouco mais pessimista, Voici Venu le Temps (2005), estavam ainda em movimento mas não havia saída para a claustrofobia.
Bem visto... Porquê? E porque não? Penso que este é para mim um momento de ruptura. Tentei passar a outra coisa. Posso até dizer que fui buscar algo do passado e que acaba por ter a ver com a minha veia mais realista, essa ideia de huis clos. O lago, tal como a fábrica de Ce Vieux Rêve Qui Bouge: algo que se move, mas que permanece sempre no mesmo sítio, uma sensação de amplitude mas ao mesmo tempo uma limitação, algo de fechado.
Gosto dessa ideia de amplitude e de um lugar a céu aberto mas que acaba por funcionar como um ângulo que vai ficando cada vez mais pequeno. O Desconhecido do Lago também se vai fechando sobre si próprio. Tentei apresentar uma mudança mas recorrendo a algo que já tinha feito, em Ce Vieux Rêve Qui Bouge, e que tinha abandonado: algo próximo da realidade.
Em outros filmes as possibilidades de fantástico permitiam uma saída. Aqui não há hipótese.
Penso que há uma dose de fantástico neste filme, mas resulta de uma base real: planos do céu, do lago, do lago negro...
Se calhar até há movimento; mas será sempre a história de alguém que se move em direcção à morte.
É verdade. O que me agradou foi o facto de esse fantástico resultar da realidade que consegui captar no momento e não de algo que já vinha pensado. Nisso os meus filmes anteriores são diferentes: resultavam sempre de uma coisa estruturada e não de algo que acontecia naturalmente durante as rodagens. Obviamente que em O Desconhecido do Lago também existe uma ideia pré-concebida, mas as coisas surgem de forma mais natural, nascem da imagem e do som. Ou seja, materializam-se através do cinema.
É verdade que o filme mostra coisas que não estavam presentes antes. A sexualidade surgia sempre ligada à fantasia, aqui não.
Sim, absolutamente. O filme baseou-se em locais de engate que conheço, poderia perfeitamente ter sido à beira-mar, mas não, preferi as margens de um lago que transmite essa ideia de huis clos. Penso que desta vez abordei a sexualidade com mais seriedade. Queria falar da paixão, essa coisa que é depender de outra pessoa. Também nunca tinha abordado o amor entre homens. Era para mim uma questão complexa de ser abordada.
Por causa do sexo?
Absolutamente. A primeira vez que filmei esse tipo de cenas foi em O Rei da Evasão (2009), que retratava a vida de um homossexual. Mas eram cenas de sexo entre homem e mulher, a homossexualidade não era representada – não me sentia à vontade para representar essas cenas. O sexo não deixa ainda hoje de ser assustador. Quando assistimos pela primeira vez a um porno é assustador, representa algo de primitivo. O sexo mexe connosco, é a origem de tudo. E queria aqui abordar o sexo na sua plenitude: o amor, a paixão, o carinho, não apenas a sua representação mais fria, mais primitiva. Porque para mim ainda existe uma relação forte entre o sexo e o amor, e queria eliminar a componente mais pornográfica que existe no sexo.
As personagens representam várias formas de encarar o sexo e os afectos num mundo identificável: hoje, o pós-sida.
A sida está muito pouco presente no cinema, apesar de ter alterado por completo as nossas relações amorosas e até sentimentais.
É por isso um mundo com utopias e fantasmas, nostalgias e pesadelos. A personagem de Michel, o assassino, é um mundo do passado, perigoso, que faz a sua aparição: os anos 70.
É verdade que abordo ao mesmo tempo um mundo que já pertence ao passado, o mundo dos anos 70, o mundo do hedonismo, e o mundo de hoje. Há pessoas que me dizem: “Mas o mundo que mostras já não existe; hoje, com a Internet, já não se engata assim [na praia, a céu aberto]. Hoje as conquistas amorosas são feitas em frente a um ecrã, quer seja um computador ou um telemóvel...” Não concordo muito com essa ideia, gosto de acreditar que as verdadeiras relações surgem de outra forma.
Evoco aqui um mundo que foi hedonista. Penso até que houve uma utopia homossexual, no sentido em que a homossexualidade revolucionou o amor, as relações amorosas. E se calhar essa liberdade deixou-se vencer pelo capitalismo, pelo liberalismo e pelos negócios: temos hoje uma postura bastante consensual em relação ao sexo em geral. Digamos que gosto dessa ideia de perigo que plana sobre as nossas cabeças. Interrogo-me muito sobre o nosso mundo e a nossa sociedade, um mundo individualista onde cada um está em constante busca do prazer e do bem-estar.
Passemos então a Michel (Christophe Paou) e ao que vem do passado: fisicamente, há algo nele de estereótipo dos 70s. Escolheu esse actor por corresponder a um físico? Hoje o estereótipo é outro...
Apesar de ter achado nos ensaios que estava na presença de um grande actor, inicialmente gostei do ar tipo Tom Selleck na série Magnum, com o inseparável bigode. Queria, com essa escolha, cortar com a figuração típica do cinema francês, procurar novas caras mais vintage. E resultou, encontrei uma cara intemporal. Não foram necessárias grandes mudanças no visual, tivemos apenas que depilar o corpo dele, porque é o que se usa hoje, foi a única intervenção necessária.
O sexo entre Franck (Pierre Deladonchamps) e Michel acontece sempre depois da morte passar por ali. Numa primeira vez, a seguir a um assassínio; na segunda depois de uma interacção entre os dois na água que reedita a sensação de ameaça de uma sequência anterior: Franck e Michel nadam ou brincam da mesma forma que Michel e o seu anterior amante antes de Michel o matar. E a sequência final é de entrega à escuridão – como o chamamento de um back room num bar. O fantasma de Cruising, de Friedkin, anda por aqui.
Para mim esse filme até é bastante romântico. Franck não necessita do perigo, nem da morte para se sentir excitado, se bem que Michel seja um assassínio e Franck continue a desejá-lo. É por isso que é um filme muito romântico. Para mim a ideia de romantismo é a paixão que as pessoas sentem uma pela outra, paixão e sexo levados até ao limite, correndo todos os riscos que podem até conduzir à morte. O romantismo é esse mistério em torno do desejo, da morte e do gozo.
Às tantas um inspector de polícia, figura burlesca, critica as personagens – representantes de um grupo – por falta de solidariedade: morreu uma pessoa, ficaram os despojos na praia, roupa, ténis, mas os engates continuam... Partilha a visão do inspector?
Sim, são questões que tenho em relação à comunidade homossexual, mas também em relação a qualquer outra em que a solidão está presente. Embora o indivíduo esteja rodeado de outras pessoas, é uma solidão conjunta. O que diz o inspector vale para qualquer outra comunidade, até para a comunidade humana. Isto é: assistimos a coisas que estão erradas no mundo mas não fazemos nada para as alterar. Aborda neste filme a humanidade e não apenas a homossexualidade.
É uma contradição o facto de o filme que mais explicitamente individualiza um grupo ser o seu filme mais universal?
Não é uma contradição, apesar de retratar um microcosmos: relações amorosas entre homens, personagens nuas e num cenário quase hardcore. Essa universalidade é uma questão de mise-en-scène, foi conseguida também com os diálogos, com o recurso a um “género”, o policial: há um homicídio, o polícia, a investigação...
Pergunto-me também, e talvez isso seja o fundamental, se não terá a ver com algo em que acredito há muito mas que nunca levei até ao limite: só quando chegamos ao nosso mais íntimo é que conseguimos verdadeiramente falar aos outros. Quanto mais formos honestos connosco próprios mais conseguiremos dialogar com os outros, pois só assim as pessoas se poderão rever, no que lhes está contado, com autenticidade e sinceridade. Mesmo politicamente é assim que as coisas devem ser.
Se calhar essa universalidade também acontece porque em filmes anteriores acabamos por saber sobre as personagens aquilo que as particulariza social e economicamente. Aqui elas são uma tela em branco, quase abstractas, o espectador pode projectar nelas os seus fantasmas. O lago é um espelho, não se pode fugir ao reflexo.
De facto pensámos no lago como espelho, mas não sei se isso funciona na realidade...
O realizador Guiraudie aparece em duas cenas. Numa delas veste uma t-shirt rosa, a cor usada pelo assassino a seguir ao seu acto Porquê?
Nunca tinha reparado nisso. É preciso ter cuidado consigo...(risos)
Por que decidiu entrar no filme?
Estávamos a escrever o guião e a dada altura perguntámo-nos: “Quem vai desempenhar este papel?” Respondi simplesmente: eu. Quis fazê-lo porque seria importante estar no meio dos actores, sair da figura de voyeur. Era importante estar no meio deles, fazer parte desse mundo.
Que acordo fez com os actores para as cenas de sexo? Houve duplos. Eram actores de filmes pornográficos?
Não, eram actores “normais”.
Porque não recorreu a eles para todo o filme, porque só os utilizou para as cenas de sexo?
Porque os dois actores que interpretam Michel e Franck já estavam escolhidos quando se tratou de recorrer os duplos e porque eram os melhores para os papéis, os mais interessantes e complexos. Fizeram questão que no genérico estivesse explícito que houve recurso a duplos. O meu objectivo inicial era que as pessoas não soubessem que tinha havido duplos nas cenas de sexo. Entendo, apesar de tudo, que pode ser perigoso para um actor estar associado a essas cenas. No entanto, num filme futuro pretendo exigir que eles façam todas as cenas. Pode acontecer que não queiram e também não quero ser manipulador. Imagine até que um actor esteja a ter uma erecção no momento em que não é suposto... O importante é toda a gente estar de acordo em relação aos limites. Sempre dei a hipótese aos actores de se arrependerem de algo que tenha sido filmado. Falo com eles e fazemos a cena de outra maneira. Gosto de ser correcto com eles, não faço parte daqueles realizadores que acham que podem fazer o que lhes passa pela cabeça.
Lê-se sobre o seu background, diz-se que não frequentou escola de cinema, que é autodidacta. E vem de um meio comunista.
Venho do mundo rural, o meu pai era operário e a minha mãe tratava da quinta. Eles não eram nada comunistas, eram simplesmente católicos. Eu estou em total ruptura com a minha família, eles não queriam que eu fosse comunista. Aliás, nem comunista nem homossexual. Nunca querem que sejamos homossexuais... Aderi ao partido comunista em 1985...
... que também não quereria que você fosse homossexual.
Nos anos 80 podia-se dizer que se era homossexual, talvez não fosse possível isso nos anos 50 ou 70, mas era bem aceite no partido na década de 80. No imaginário colectivo, a homossexualidade pertencia só às classes mais ricas, não era vista como algo possível no meio dos pobres.
Precisamente, Ce Vieux Rêve qui Bouge (2001): uma fábrica desmantelada, os trabalhadores despedidos mas o que mexe é o desejo. O filme foi festejado por instalar o operariado no centro das imagens, coisa que andava arredada do cinema francês, mas a intromissão da sexualidade e dos sentimentos não era uma forma ortodoxa de falar desse mundo – foi como se esse mundo em crise, crise também de representação, precisasse de ser refundado e o realizador utilizasse os sentimentos e o sexo.
Fiz isso para demonstrar que a homossexualidade está presente em toda a parte, não só nos locais mais chiques e ricos. Mostrei fábricas desactivadas para evidenciar as derrotas sociais e políticas. Eram impasses que faziam também parte da minha vida e havia que lidar com eles. Queria mostrar como o prazer era sempre visto como o oposto do trabalho.
Você, de alguma forma, está retratado naquele jovem de Ce Vieux Rêve qui Bouge que entra na fábrica em crise para desmontar uma máquina. É isso que faz a a ortodoxia sensual e política: desmonta-as.
Isso.
Aquela fábrica lembra uma catedral sem culto, onde já não há missa.
Foi a forma que arranjei para ultrapassar os impasses políticos e sociais. Queria ajudar as pessoas que viam o filme, era como se eu quisesse descobrir novos horizontes para elas. Como dizia Jean-Luc Godard: “Não faço filmes políticos, mas faço politicamente cinema”.
As suas personagens movem-se e falam muito. Andam para gastar a angústia? Fogem? É isso também que tem feito o cineasta Guiraudie, um “rei da evasão” a calcorrear terras de fantasia e que agora se deixa imobilizar para enfrentar o espelho?
Penso que acabo sempre por andar à volta, volto para trás e depois se for preciso continuo... Acabamos por fazer sempre o mesmo género de filmes. Não sei, tenho que pensar seriamente nisso...
É verdade que o cinema é movimento, as perseguições e as fugas são recorrentes. Em Du Soleil Pour Les Gueux (2001) isso é emblemático: “Corro, vou-me embora, volto”. Havia linhas coreográficas que atravessavam o filme através de corridas a pé. Era o dilema de partir e de não poder partir, a ideia de isolamento e de “outro sítio”. Todos precisamos de “outro sítio”. Não sabemos nem onde nem o que é mas necessitamos todos de “outro sítio”.
A propósito de Ce Vieux Rêve Qui Bouge, há declarações suas da altura a lamentar a ausência do proletariado no cinema francês. E no entanto há todo um património: pense-se em Jean Gabin, pense-se no “realismo poético”. Foi a nouvelle vague, afinal, que favoreceu a burguesia?
Estou a tentar pensar num cineasta da nouvelle vague que não seja burguês...Teria que fazer pesquisa. É verdade que esse cinema retratava a burguesia, eram caras bonitas, jovens. No que me diz respeito, procuro algo diferente. Existe o meu desejo íntimo mas também um objectivo político. Tento derrubar a uniformização do mundo para devolver ao indivíduo o direito à sensualidade, à sexualidade, à homossexualidade, ao desejo. Não suporto a ideia de que a sensualidade, a beleza e o amor possam só pertencer às pessoas bem feitas e novas que vivem nas cidades. Não é esse o meu mundo, nem é ele que está nos homens dos meus filmes — excepção feita a este –, que são mais do género proletário, camponês, “urso”.
Se O Desconhecido do Lago foi uma ruptura, como é que as coisas vão mudar daqui para a frente?
Não se trata de uma ruptura permanente. Poderei voltar a coisas do passado. Estou a preparar um filme com um conteúdo mais social, uma história de amor entre um pequeno burguês e um rapaz completamente perdido e sem futuro. O Desconhecido do Lago vai passar a ser a minha obra de referência, o meu sótão onde posso ir buscar coisas. Não quero é cair no erro de criar os meus próprios estereótipos, criar uma luta entre o belo e o feio. Tenho que aceitar também as pessoas bonitas fisicamente, não posso criar estereótipos.
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