Após cinco séculos, obra de grande matemático português já pode ser lida por todos

Francisco de Melo, matemático da geração anterior a Pedro Nunes, ainda não tinha a sua obra em latim traduzida para português. Primeiro de dois volumes vai ser lançado nesta quinta-feira.

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A cópia do códice na Biblioteca Nacional foi estudada por Henrique Leitão (à esquerda) e Bernardo Mota Nuno Ferreira Santos (arquivo)

O códice esteve perdido durante séculos. Há uma única cópia conhecida em latim do trabalho de Francisco de Melo, que está na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa. Por isso, o texto era até agora inacessível à esmagadora maioria das pessoas, deixando Francisco de Melo afastado dos anais da história da ciência portuguesa.

Os historiadores de ciência Henrique Leitão e Bernardo Mota tinham iniciado a tradução da obra de Francisco de Melo a partir da cópia da BNP, em 2011. “A cópia na BNP tinha um tipo de tinta que acaba por corroer o papel. Há passagens onde é difícil ler o texto”, diz ao PÚBLICO Bernardo Mota, que, tal como Henrique Leitão, pertence ao Centro Interuniversitário de História da Ciência e da Tecnologia, em Lisboa.

Mas, em 2012, a BNP foi informada pela Biblioteca Estadual de Berlim da existência de outro exemplar do códice, que estava no Arquivo da Cidade de Stralsund, no Norte da Alemanha. Quando Henrique Leitão olhou para a nova cópia, verificou que estava perante o próprio códice que D. Manuel I recebeu. “Ficámos radiantes, porque finalmente tinha aparecido o original”, disse na altura o historiador ao PÚBLICO.

O códice facilitou o processo de tradução. E o seu lançamento é nesta quinta-feira, às 18h30, no auditório da BNP. “A partir de agora não se pode falar da história da ciência [portuguesa] do século XVI sem o nome de Francisco de Melo”, diz Henrique Leitão, Prémio Pessoa 2014. “É toda uma nova figura de primeiro plano.”

O livro agora editado com o título Obras Matemáticas de Francisco de Melo é o primeiro de dois volumes sobre os trabalhos do matemático do século XVI (editados em conjunto pelo Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa e a BNP). Nas mais de 500 páginas (o manuscrito original tem 122 folhas) do primeiro volume, que custa 25 euros, está o texto em latim e a tradução em português. O segundo volume, que talvez seja editado em 2016, vai ter uma explicação global da obra, referindo a sua importância, explicando quem é Francisco de Melo e dando o contexto histórico. Além disso, terá também um comentário explicativo sobre as passagens mais complicadas do texto ou o contributo científico de Francisco de Melo na discussão daqueles temas.

Grande em Paris
Nascido em 1490, Francisco de Melo tornou-se suficientemente conhecido como homem da ciência para ser citado no Auto da Feira de Gil Vicente. O matemático era filho de Manuel de Melo, o representante do rei D. João II em Olivença, estudou na Universidade de Lisboa e em 1514 foi enviado para a Universidade de Paris como bolseiro do rei. Voltou para Portugal passados dez anos e foi reitor da Universidade de Lisboa. Morreu em 1536.

A obra agora traduzida foi produzida em Paris e é composta por quatro textos: um sobre o olho e as propriedades da visão; outro sobre a óptica de Euclides; um comentário à catóptrica de Euclides (a ciência que estuda a reflexão dos raios luminosos em espelhos); e um estudo sobre hidrostática atribuído a Arquimedes, no qual se explica como é possível medir o peso de um sólido em água.

Na altura, o trabalho teve impacto. “Sabemos que Francisco de Melo era reputado em Paris e teve sempre fama de grande matemático”, diz Henrique Leitão. Paris era então um centro científico. “Lá, Francisco de Melo tinha acesso a muitos mais manuscritos científicos do que em Portugal. Há um núcleo de matemáticos interessantes em Paris com quem teve contacto.”

O texto sobre hidrostática ficou muito conhecido na altura e foi publicado em França em 1546, apesar de não estar atribuída a sua autoria. Arquimedes era um autor muito difícil. “Francisco de Melo é o primeiro autor do Renascimento a comentar um texto de Arquimedes”, diz Bernardo Mota, sublinhando a qualidade do matemático português.

Mas até agora, como os textos não tinham sido estudados, era impossível compreender qual o impacto dos comentários sobre os trabalhos de óptica e catóptrica de Euclides. A cópia da BNP está datada entre finais do século XVI e inícios do século XVII, mas não foi traduzida. E o códice oferecido ao rei tinha-se perdido entretanto.

Depois de ter sido localizado no Arquivo da Cidade de Stralsund, ficou a conhecer-se grande parte do seu caminho. A obra foi parar às mãos do cosmógrafo-mor português Luís Serrão Pimentel (1613-1679), que, mais tarde, a ofereceu ao nobre espanhol marquês de Liche. Quando este nobre morreu, o códice passou para o embaixador sueco em Madrid, Johan Gabriel Sparwenfeld, que comprou parte do espólio do marquês. Mais tarde, o general Axel von Lowen, governador-geral de Stralsund entre 1748 e 1767, obteve a obra. E em 1761 doou-a à cidade juntamente com outros 2500 volumes.

Os meandros da tradução
Finalmente, os responsáveis pelo Arquivo da Cidade de Stralsund pediram a Jürgen Geiss, doutorado em História e especialista da Biblioteca Estadual de Berlim, para analisar a obra. “No início, não compreendi a importância [do códice], excepto as iluminuras extraordinárias e a bela caligrafia”, disse Jürgen Geiss ao PÚBLICO em 2012. O especialista alemão esteve três meses a analisar a obra e acabou por descobrir a cópia na BNP — e foi assim que Henrique Leitão foi contactado.

Os dois historiadores portugueses tiveram acesso às cópias digitais do documento, o que facilitou muito a tradução, mas não completamente, explica Bernardo Mota. Pensa-se que o códice tenha sido escrito por três copistas: o primeiro escreveu o texto; o segundo desenhou as iluminuras — a ornamentação da primeira letra de cada capítulo, que é maior, tem um estilo mais complexo e motivos florais e pinturas a dourado; e o terceiro fez os desenhos laterais.

Este processo deu origem a erros que Bernardo Mota e Henrique Leitão tiveram de descortinar. “O texto não está escrito de uma forma bem pontuada, não tem as letras grandes sempre identificadas, nem as letras dos desenhos geométricos bem identificadas. É fácil confundir um C por um B nos desenhos”, diz Bernardo Mota.

Mas houve mais dificuldades. Há casos em que a informação do texto não bate certo com a figura. Noutros, as figuras não estão bem desenhadas ou não foram mesmo desenhadas de todo, e neste caso os historiadores tiveram eles próprios de as desenhar na tradução que agora publicam.

A própria forma de escrever matemática da altura era diferente. “A matemática é elementar, [mas é difícil] compreender os argumentos de Francisco de Melo”, explica Bernardo Mota, elucidando outro aspecto do desafio que é interpretar textos técnicos antigos. “É difícil perceber a concatenação dos argumentos. A forma de expressar determinados conceitos matemáticos é diferente da que fazemos hoje. É importante conhecer o latim e a linguagem matemática da época.”

Mas o resultado permitiu finalmente perceber a qualidade de Francisco de Melo como matemático. Para já, foi possível compreender que era um teórico, não procurava uma aplicação do seu trabalho. “É um entendimento novo da ciência portuguesa”, contextualiza Henrique Leitão. Pedro Nunes (1502-1578), o grande matemático da geração seguinte, responsável por importantes trabalhos sobre cartografia, trabalhou a partir de problemas da náutica.

“Francisco de Melo é muito rigoroso. Em alguns momentos, os textos originais não eram rigorosos e ele melhorou algumas das demonstrações matemáticas”, refere Henrique Leitão. Os textos da Idade Média sobre o mesmo assunto de hidrostática eram confusos. “O primeiro texto claro é de Francisco de Melo”, exemplifica.

Ainda ficou muita coisa por responder sobre o matemático. Deixou escola em Portugal? Fez mais trabalhos de matemática? Teve importância na mudança de rumo de Pedro Nunes, que passou da medicina para a matemática? Qual foi a influência dos seus comentários sobre os trabalhos de Euclides?

“É preciso ver se os textos [posteriores] sobre os trabalhos de Euclides introduziram as novidades trazidas por Francisco de Melo”, explica Henrique Leitão. Só assim será possível avaliar a real importância do matemático português para a matemática da altura. Para já, e pela primeira vez, qualquer um poderá ter acesso à sua obra. “Oferecemos este texto”, diz. “Agora, qualquer pessoa que saiba um pouco de matemática pode lê-lo.”

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