Sair do armário e entrar numa gaveta?
Faríamos bem se, em vez de erguer barreiras intransponíveis em torno dos nossos interesses, criássemos diálogos com aqueles que nos procuram e fôssemos ainda mais além.
Os movimentos ligados à luta pela igualdade e direitos civis (nos quais incluo o LGBTI+) avançaram nos seus objectivos através de uma afirmação de identidade. Muitas vezes, essa afirmação passava pela necessidade de dar maior visibilidade à comunidade (saída do armário, marchas, desobediência civil, etc.), combatendo uma repressão social mais ou menos explícita. Ao mesmo tempo, forjava-se comunidade em torno de um único aspecto da constelação complexa (e, por vezes, fluida) de que uma identidade é construída.
Essa estratégia de afirmação teve algum êxito. Na verdade, os movimentos feministas, de pessoas com deficiência, LGBTI+ e anti-racista/esclavagista conseguiram, com diferentes graus de sucesso, alterações (às vezes paradigmáticas) nas estruturas políticas de alguns países ocidentais. É, todavia, cedo demais para pensar em vitória: Michel Foucault e Edward Said tinham razão. A dialéctica entre narrativas e cultura é difícil de mudar. A evolução do enquadramento jurídico pode até ser célere, mas as "mentalidades" vão demorar bem mais a fazer o seu caminho.
Embora o esclavagismo tenha sido abolido nos países ocidentais há muito, os povos outrora traficados e colonizados continuam até hoje a sentir racismo e várias formas de desfavorecimento em múltiplas dimensões das suas vidas quotidianas. Os movimentos de pessoas com deficiência e LGBTI+, comparativamente aos abolicionistas e anti-racistas, começaram ontem.
Há que reconhecer que a cultura hoje está a mudar mais rapidamente do que no passado. A perda de hegemonia masculina, branca, heterossexual, europeia, de classe média na articulação das narrativas colectivas está, sem dúvida, a enriquecer e a facilitar as lutas civis e políticas que ainda temos pela frente. O Portugal de hoje, do ponto vista de uma pessoa LGBTI+, é socialmente bem mais inclusivo do que o de há 30 ou 40 anos.
Quando se formou a ILGA-Portugal, em 1995, o nosso primeiro objectivo político era a inclusão da "orientação sexual" como critério explícito de não discriminação na Constituição da República Portuguesa, assim garantindo a aplicação de um aspecto do tratado europeu. Era fundamentalmente uma luta pela igualdade. Havia uma preocupação de ser uma força agregadora, genuinamente inclusiva e convergente de interesses muito diversos.
É assustador ter agora a percepção de que estas identidades estão sujeitas a duas forças novas e importantes: 1) uma crescente capilaridade / fragmentação das identidades; 2) um algoritmo tecnológico de comunicação que torna essas identidades cada vez mais herméticas. Resultado: em vez de nos sentirmos cada vez MAIS integrados, mais IGUAIS numa sociedade DIVERSA, sentimo-nos cada vez mais isolados.
A afirmação da “diferença” parece que perdeu a função e está a abrir um abismo cada vez mais difícil de contornar. Aqui chegados, importa questionar: quando é que a estratégia da visibilidade deixou de ser um instrumento para a igualdade e passou a ser uma bandeira divisória? Quando é que um movimento que lutava para uma maior INCLUSÃO passou a valorizar uma postura dicotómica, quase tribal, na sua exclusividade?
Tenho constatado que é frequente algumas pessoas se sentirem indignadas com as tentativas (mais ou menos desajeitadas) de homens, brancos, heterossexuais, pessoas sem deficiência (se é que existem) demonstrarem vontade de aprender com as experiências de grupos socialmente desfavorecidos e estigmatizados. “Nunca saberás o trauma que é ser mulher, ou gay, ou trans, deficiente.” Talvez não, mas, nesse processo de polarização, há o perigo de estas comunidades atomizadas ficarem cada vez mais insulares e afastarem pessoas que QUEREM ir ao seu encontro e aprender com as suas experiências. Talvez até forjar um caminho diferente, novo, onde todos se sintam melhor em conjunto.
No meu entender, faríamos bem se, em vez de erguer barreiras intransponíveis em torno dos nossos interesses, criássemos diálogos com aqueles que nos procuram e fôssemos ainda mais além, procurássemos construir pontes onde ninguém imagina sequer que possam existir. Por vezes, o acto mais corajoso e humanista não é a ligação a alguém com quem partilhamos algo, mas a alguém com quem (aparentemente) não temos nada em comum.