Tecnicamente, a Mercearia Criativa é uma loja de produtos finos em Lisboa, mas, para nós, cai num conceito que gostamos de catalogar por Cheer's Aquele Bar. Quer dizer, há um núcleo fixo de habitantes do bairro, vulgo, clientes, que passam por lá dia sim dia sim, ao final da tarde, para comprar produtos, participar em provas disto e daquilo, dar dois dedos de conversa e rir um bocado antes de regressarem a casa com umas conservas açorianas, uns enchidos alentejanos, arroz Ariete da Quinta do Seminário, azeites de Trás-os-Montes, pão feito pelo chef Bertílio Gomes ou vinho das regiões preferidas.
Ora, no dia 13 de Dezembro, a Mercearia Criativa resolveu juntar no espaço os membros mais assíduos do clube para um petisco de final de tarde. Como é de bom tom, convinha a cada um levar uma ou outra garrafa de vinho que não se vendesse na loja e que, em tese, nunca tivesse sido provado pelos convidados. Vai daí, ocorreu a alguém, não uma garrafa, mas dois garrafões de cinco litros. Um de branco e outro de tinto. O quê? Garrafões de vinho para a festa numa loja fina? Pois, mas, calma, estamos a falar de vinhos de categoria, certificados e da grande região da Bairrada. O Aleixo Reserva branco e tinto, da Real Cave do Cedro. Como foram avaliados pelos presentes? Pura e simplesmente como os vinhos da noite. Por causa do vinho em si? Sim, claro, mas não só.
Vejamos, esta é mais uma prova de que o vinho numa garrafa de grande formato é, além do mais, uma festa e uma forma táctica de chamar a atenção de quem está presente. E se isso já acontece com uma magnum (1,5 litros) ou uma double magnum (3 litros), imagine-se o foguetório de um garrafão de cinco litros a circular pela sala. É inevitável: até o cliente que prefere cerveja vai querer provar o vinho.
A presença dos dois garrafões Aleixo pode ser avaliada a três níveis: a surpresa do formato, o vinho em si e as conversas que se soltaram durante várias horas.
Quanto à primeira, ninguém ficou indiferente a um garrafão que parece ter passado por um estúdio de design. Como é evidente, não se tratou de um garrafão empalhado ou plastificado. É, à semelhança daquele que inaugurou este estilo de abordagem ao vinho (o Vieira de Sousa Reserva Ttinto 2011), uma peça de vidro acastanhado que desencadeou um concurso de ideias para a sua utilização depois de vertido último copo. Houve quem avançasse com soluções decorativas e houve quem, com mais juízo, propusesse o reenchimento do vasilhame.
Sobre o vinho em si, agradou a quase toda a gente. O Aleixo Reserva Branco 2022, feito com Maria Gomes e Bical, tinha notas florais delicadas, com a boca a revelar sabores frutados e salinos, num conjunto bastante harmonioso. Não se ouviu a mínima crítica a este vinho.
O seu irmão Aleixo Reserva Tinto 2020 apresentou-se com notas de casca de frutos vermelhos, vegetal e ligeiramente terroso. Na boca, ao recordar daquilo que se sentiu no nariz, destacou-se por um carácter franco e sedoso. Teve aplausos de toda a plateia? Não, mas isso é porque muita gente, habituada a vinhos mais doces e carregados de fruta, continua a torcer o nariz aos tintos feitos a partir da casta Baga. Para nós, estava fantástico e cheio de terroir. De resto, a única questão que se pode apontar a estes dois vinhos é o pequeno crime de terem sido abertos antes do tempo, mas isso é por causa da nossa gula. Daqui por dois anos vão estar esplendorosos.
Sinónimo de festa
Agora, a parte mais importante da festa foi mesmo a conversa que os vinhos desencantaram, no interior da loja ou no passeio em frente da avenida. Com um copo de Aleixo Reserva Branco, alguns dos clientes descobriram que outros clientes que por ali aparecem — e que se cumprimentam de forma urbana e cordial — tinham estado em eventos políticos em Angola e Cabo Verde na mesma altura (antes do 25 de Abril). Daqui partiu-se para a importância da música africana para a criação do Blues e, a dada altura, só se falava de Toumani Diabaté, de Balaké Sissoko de Ali Farka Touré (genial guitarrista e agricultor) ou das canções que Peter Gabriel gravou com Youssu N´Dour. Só esta parte daria matéria para mais uma bela crónica do Nuno Pacheco.
Para remate de conversa, grandes peripécias com o Fernando Alves e Emídio Rangel em Angola aos microfones de uma rádio cujo nome não nos recordamos. Tudo isso porque o amigo Zé Mouronho, um dos habitués da Mercearia Criativa, é um poço de histórias sobre África. E como tem mesmo muitas histórias para contar, de imediato se combinou um jantar para prolongamento da festa.
Alguém poderá dizer que estas histórias poderiam ter sido desencantadas com um qualquer vinho de uma garrafa de 0,75l. Pois, é verdade. E até com um simples café numa esplanada será possível. Mas, na realidade, o que juntou esta gente toda num passeio da Avenida Guerra Junqueiro foram dois vinhos metidos num garrafão de cinco litros. Donde, vinhos em garrafas de grande formato não são apenas funcionais quando juntamos muito amigos (desde que todos não bebam, como diria o produtor Mário Sérgio), nem são apenas a maneira de garantir melhor evolução do vinho (quanto maior a superfície onde o vinho vive, melhor para a qualidade deste). São — mais importante — sinónimo de festa, de alegria e de memória histórica.
De resto, Ricardo Aleixo, a alma da marca Aleixo Wines, decidiu explorar estas duas referências em garrafão para homenagear um avô que, na década de 50 do século passado, vendia garrafões de vinho para as celebrações especiais das famílias. E a procura tem sido tal que não põe de parte engarrafar outras referências da empresa, um luxo para os amantes dos vinhos da Bairrada.
Que o exemplo dos garrafões Vieira de Sousa e Aleixo se replique um pouco por todo o país. O vinho e os consumidores de bom gosto agradecem.
Cada garrafão Aleixo Reserva, da Real Cave do Cedro, custa 45 euros (uma fortuna por 5 litros...). Mais desenvolvimentos desta crónica, em breve, aqui, no Terroir.