Tudo o que perdemos
Sempre me assustou a hipótese de perder memória, de perder as coisas que guardo sobre mim e sobre os outros, de perder a bússola que me orienta, o mapa que me guia sem que seja preciso recorrer a ele.
Perdemos coisas. As coisas mais importantes, arrisco a dizer, perdemos.
Da lista de coisas extremamente importantes que perdi durante a minha infância e pré-adolescência, consigo recapitular uns quantos itens extraviados para sempre no misterioso espaço inominável onde se escondem os objetos desaparecidos: dez guarda-chuvas; três kispos; dezenas de lápis e canetas; vários cadernos de pautas, linhas e quadriculados; dois relógios da Swatch e um Flik Flak vermelho e amarelo; alguns Cubos de Rubik, ou Cubos Mágicos (mas visto que eram “mágicos” sempre considerei que um dia voltariam aparecer); umas sete toucas de piscina; um aparelho dentário móvel; um anel e uma bracelete em prata dourada com nome entalhado oferecidos pela minha Avó; alguns brincos; bugigangas de cabelo; vários bilhetes de autocarro; livros escolares; borrachas; afias; mochilas inteiras…
Muitas vezes perdia os recados enviados pela professora onde ela explicava que eu perdia demasiadas coisas. Não sei onde as perdia. Os objetos ficavam provavelmente pousados no banco do parque, dentro do saco do lanche que se enfiava no lixo, caídos em cima no muro onde me sentava, porque escorregavam sem querer dos bolsos.
Enquanto cresci, a curva do meu percentil de altura perdeu a aceleração, e perdi a oportunidade de concretizar o meu desejo secreto de me tornar a Claudia Schiffer, e de fazer carreira como partner loira, esguia e com um metro e oitenta, do famoso ilusionista David Copperfield, e de me dedicar ao sonho de entrar elegantemente num paralelepípedo cintilante para desaparecer subitamente atrás da cortina de veludo. Abandonadas as fantasias devotamente pirosas de fazer carreira profissional na arte da prestidigitação, as minhas perdas foram-se tornando mais abstratas e contudo, não menos pesarosas.
À medida que fui ficando mais velha perdi a voz fofinha, as bochechas adoráveis, a (já escassa) flexibilidade da estrutura muscular esquelética, ou o talento para instrumentos de cordas, e claro… Amigas, namorados, convites para festas, sentidos de oportunidade...
E da mesma forma que nunca fui capaz de tocar o Dunas na guitarra, tal como todos os adolescentes da minha geração, ou que nunca soube fazer a espargata nas aulas de ginástica do liceu — por muito que as minhas virilhas diligentes se empenhassem em sacrificar —, fui percebendo que há coisas que perdemos sem que as consigamos nomear, coisas que só reparamos ausentes, muito tempo depois, quando regressamos a um lugar que nos revela a paisagem do que já não temos e nem notámos que deixámos escapar.
Muitas vezes essas coisas que perdemos, já não nos fazem falta: como um amigo imaginário em forma de urso às cores, que nos deixava pousar a cabeça nos seus ombros reconfortantes e oferecia carícias felpudas quando nos sentíamos sozinhos, e que desapareceu, por timidez, ou amuo, quando os amigos verdadeiros nos começaram a emprestar os ombros.
Quando aprendi, na escola, a lei da conservação da massa, formulada por Lavoisier, que explica que “na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” fiquei apaziguada com a ideia do desaparecimento das coisas que já não era capaz de encontrar, e tranquilizei-me ao imaginar que o meu aparelho ortodôntico talvez viesse a transformar-se noutra coisa extremamente útil, e ter uma nova função na Natureza.
Há quem defenda que os objetos se perdem por conspiração: molas da roupa, pares de meias, canetas BIC — há até redes de teorias conspirativas sobre como as canetas BIC são afinal sondas enviadas por seres alienígenas para nos espiar. Espiamos a nossa incompreensão e incapacidade de compreender o mundo e de controlar a ordem do universo com pensamentos mágicos, com as versões mais mirabolantes das nossas falhas.
E entre as coisas que perdemos concretamente com o passar tempo, como a massa muscular e a tonicidade cutânea, há todas as coisas que consideramos estar a sempre a perder, num cálculo asfixiante sobre os livros que não temos tempo de ler, as promoções que não vamos apanhar, os espetáculos que não vimos, os jantares a que não vamos, os amigos que não revemos, as coisas que não sabemos, os concertos a que vamos faltar por falta de tempo, falta de dinheiro, excesso de compromissos na agenda, as notícias que não vamos conseguir ver se não formos atentos o suficiente…
Todas as coisas que nos escapam entre os dedos, se não formos rápidos o suficiente para carregar no gatilho do telemóvel, pronto a disparar, numa espécie de tapete rolante de informação, contrainformação, de opiniões, das novas trends, do novo single, da nova série na plataforma, no streaming, com todos os novos estrangeirismos… O FOMO, “fear of missing out”. A fome, uma azia daquilo que perdemos sem chegarmos a absorver sequer. O que sabemos existir mas não conseguimos segurar.
Mas a verdade é que, por vezes, é preciso perder coisas, para se conseguir arranjar espaço para outras, que nem sequer sabemos existirem. Quando perdi, voluntaria ou involuntariamente, empregos que já ocupavam um espaço incomportável nos dias, invariavelmente conquistei espaço para ganhar itens, não listáveis, que nem imaginava poder ter. “Coisas” importantes.
E sempre me assustou a hipótese de perder memória, de perder as coisas que guardo sobre mim e sobre os outros, de perder a bússola que me orienta, a minha geografia interna, o mapa que me guia sem que seja preciso recorrer a ele.
Ela perdeu o telemóvel e eu queria segurar as mãos dela, coberta de lágrimas e desgosto, porque o telemóvel, que tinha desaparecido, ou que alguém lhe tinha roubado do bolso da mochila, não era só um telemóvel. Era o telemóvel do pai, e o pai, o verdadeiro, estava agora para sempre ausente, do mundo. E ela achava que talvez sobrasse um bocadinho dele naquele pedaço de lítio, na massa de ferro e carbono, na luz do ecrã, que talvez conservasse um bocadinho do que fora o pai. Um restinho que pudesse guardar e agarrar, nas fotografias registadas com a câmara, nas mensagens que ele tinha trocado no WhatsApp, e que ficavam guardadas na memória do telemóvel. E mesmo que ela procurasse na cloud, na nuvem abstrata, virtual, imensa, em que confiamos as nossas imagens, os nossos pedacinhos de vida, as nossas recordações mais privadas, havia qualquer coisa que ela perdia, por perder o objeto, por perder a matéria táctil, o telemóvel que ele tinha segurado.
Nessa tarde, vi a minha amiga quase tão inconsolável como quando tinha perdido o pai.
Perdemos coisas. As coisas mais importantes, arrisco a dizer perdemos.
Quando perco alguém, quando uma pessoa morre, debato-me com uma questão quase geográfica, que é: Onde se enfiam as coisas que estavam dentro dessa pessoa? Os pensamentos, as memórias, os sonhos, os desejos, as irritações? Onde se escondem as conversas, os trocadilhos, as ideias, os ombros reconfortantes, as carícias felpudas? Será que também se aplica a lei da conservação das massas? Quando perdemos alguém com quem partilhamos minutos, horas, dias, segredos, bocadinhos do nosso corpo, das nossas mensagens, das imagens que temos de nós, fico sempre a pensar onde ficam depositadas todas essas coisas desaparecidas...
Mesmo quando aqueles que perdemos continuam vivos.
Numa espécie de cloud privada, imagino os nossos encontros. Uma cloud só nossa, que se vai desfazendo em tempestades e descargas elétricas, com aguaceiros que escoam na berma, quando chove. Onde estarão as coisas que viste, os bocadinhos do meu corpo que registaste com a câmara secreta dos teus olhos, onde estão? Será que ficaram pousadas no banco de um parque? Dentro do saco do lanche esquecido no canto? Em cima no muro em que te sentaste e te caíram sem querer dos bolsos?
Onde está esse bocadinho da minha história? Será que já se diluiu, como na corrente de um rio, junto com outros detritos? Será que guardas esses bocadinhos com cuidado? Ou que já os deitaste fora, como quando mudamos de casa, e num ato de desprendimento deitamos num caixote aqueles objetos que em tempo nos deram consolo e agora não nos servem? Às vezes assusta-me a hipótese de passar junto e passar num contentor de reciclados e encontrar um bocadinho das minhas memórias junto de molduras velhas, tampas de garrafas e pacotes de leite vazios.
Da coleção de coisas vivas que perdi, estão também pessoas, que ainda detêm, como guardas-vigilantes de palácios invisíveis, bocadinhos que deixei com elas. Perdidas dentro delas, dentro delas, como canta a LP no seu single Lost on you (ah, sim! porque perdi muita coisa da adolescência mas não perdi o gostinho pelas fantasias devotamente pirosas): Let's raise a glass or two / To all the things I've lost on you / Ohh Ohh… Tell me are they lost on you?
Talvez tudo se perca. E tudo se transforme... Sobretudo as coisas mais importantes.
Eu quando me sinto perdida, recorro à Lei de Lavoisier.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990