O Coração Ainda Bate. Fala com ela

Inês Meneses entra n ´O Quarto ao Lado de Pedro Almodóvar.

Dentro da minha cabeça, este espaço que se arruma em dia de visitas, ainda tenho Ingrid e Martha sentadas no sofá azul marítimo das Caraíbas. Ou, talvez, recostadas nas espreguiçadeiras, imaginando um horizonte largo que se expande ao mesmo tempo que a linha da vida se estreita. Podemos viver uma coisa e outra porque a cabeça, já se sabe, ou nos salva ou nos condena. Martha queria ter a possibilidade da escolha. Ganhar a vida que lhe restava, escolhendo a morte.

O filme de Pedro Almodóvar “O Quarto ao Lado” atira-nos para o alçapão que raramente se abre. Só em caso de emergência. Esse alçapão da dignidade que, por mais absurda que pareça aos outros, nos catapulta para o direito da escolha. Saí do filme com duas palavras em rima: amizade e dignidade. O filme, ainda agora, é uma brisa morna em fim de dia ou uma ave que pousa na janela, na manhã que clareia o pensamento. Até quando a noite foi oblíqua. O filme é uma luz, mesmo sabendo, desde o início, que a maior de todas, a da vida, se irá apagar.

Almodóvar não tem feito outra coisa senão homenagear as mulheres, colocando-as sempre no pedestal que merecem, até quando é preciso brincar com as emoções extremadas, à beira de um ataque de nervos. Ingrid e Martha, Julianne Moore e Tilda Swinton já fizeram muitos filmes onde emergem sempre de um lugar diáfano ou torrencial (são intensas até no seu silêncio), mas raramente terão habitado um lugar como este quarto ao lado, que as centra no lugar da beleza, da contemplação, do pensamento. Por isso é um bálsamo vê-las juntas, mantendo as cores fortes, o batom que nos lembra que temos boca até em dias que parecem mudos. Fui procurá-las em diferentes aparições, apresentando o filme, sempre entrelaçadas e com olhar cúmplice. Não acontece muito. Ingrid e Martha estão a sobreviver ao filme, mas a amizade surge em primeiro plano e a amizade sobrevive à morte. A minha intuição, que pende para o exagero sentimental, diz-me que vão continuar muito unidas.

O cinema, por imitar a vida, pode nem sempre facilitar um encaixe que procuramos. Queremos identificar-nos ou queremos que o filme nos conte ou revele mais do que somos. No fundo, queremos que o cinema seja quase sempre sobre nós, um espelho que devolva a nossa imagem com mais encantamento. Falta maquilhagem à vida – dirão alguns. Almodóvar dá-nos tudo isso. Maquilha, mas a desordem natural da vida está lá, até quando os objectos estão dispostos de uma forma tão centrada e simétrica que parece doentia. Até quando as cores das roupas das duas mulheres nos iludem sobre o que as volta a unir e nos lembram que a vida é cor e que temos de a celebrar em qualquer dia. São lindas estas mulheres. Queremos, quero, que vivam em mim.

Martha escolhe um dia bonito para concretizar o seu objectivo. Uma das manhãs luminosas que vale por uma vida. Uma calma veste-a, para além da roupa escolhida. É comovente ver a delicadeza dos gestos, a carta que escreve. Uma lágrima atravessou a minha maquilhagem durante o filme. São especiais estas lágrimas que se encontram ao fundo do queixo, no leito que desagua no meu pescoço. Fundem-se. Como Ingrid e Martha.

Estou no meu sofá, cor de areia, longe de ser das Caraíbas, e penso na sorte que foi Almodóvar dar-nos um filme assim. Sinto que as duas amigas estão aqui comigo. Também pus batom. Uso-o até em dias de luto.

“O Quarto ao Lado”, volto a lembrar, é um filme sobre amizade e dignidade. E não há trincheiras para a amizade e a dignidade. Às vezes temos de dar o corpo às balas do ridículo para dizer exactamente o que queremos. Como queremos. Não se fazem amigos se não nos expusermos. Nunca seremos suficientemente inteiros e dignos se não abrirmos as comportas que sustêm os nossos medos. Falar de tudo implica dar forma ao que mantemos escondido.

Ela falou com ela. Ambas continuam aqui muito vivas.

O coração ainda bate.

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