O tempo foi aprisionado e adoeceu
O que nunca pára, tudo cura, não volta para trás, que se desperdiça, aproveita ou mata, o tempo parece estar doente. Foi aprisionado numa caixa de vidro.
“O Tempo é uma criatura que já existia antes de existir. Sem ela, não dirias: ‘Era uma vez’, nem saberias quem és.” Assim começa o livro Salvar o Tempo, em que de uma forma poética se reflecte sobre essa dimensão inescapável.
O relógio e o calendário avançam independentemente da nossa vontade e percepção. Aqui, mostra-se um tempo feito de areia e aprisionado numa caixa de vidro. E até gostamos de ampulhetas. Mas há outras formas de prender o tempo.
“No princípio, o Tempo era uma árvore, era a renovada frescura das nascentes, as hastes dos corços, o cheiro dos tojos à chuva, um coral no casco de um barco naufragado, a vitória do bolor sobre o doce”, escreve-se numa página dupla ilustrada com uma criança surfando um coral (imagem no topo deste artigo). Poesia na escrita e na imagem.
Menos poético, diz-nos o dicionário sobre esta acepção do tempo: “Série ininterrupta e eterna de instantes”, “medida arbitrária da duração das coisas” ou “período contínuo e indefinido no qual os eventos se sucedem”.
É difícil descrevê-lo, mas há muito que é possível contá-lo, melhor, contar a sua passagem. E como ele passa...
Ricardo Fonseca Mota mostra-nos os trabalhos bonitos a que o Tempo (o autor escreve em letra grande porque se trata de uma personagem) se dedica: “Transformar flores em maçãs, adoçar as mãos das avós, sossegar as medas de trigo e espreguiçar os castanheiros.”
O autor nasceu em Sintra em 1987, mas cresceu em Tábua e Coimbra. O seu primeiro romance, Fredo, venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís em 2015, As Aves não Têm Céu ganhou o Prémio Ciranda 2021 e foi semifinalista do Oceanos — Prémio de Literatura em Língua Portuguesa em 2021. Publicou também Germana, a Begónia (2019), A Mão e a Grandeza (2023) e Almagre (2024).
Salvar o Tempo, editado no ano que agora findou, é a sua primeira incursão nos livros para crianças e jovens e resultou de uma residência literária na aldeia do Vale da Ursa (Proença-a-Nova), em 2022.
O escritor é também psicólogo clínico, formado pela Universidade de Coimbra, e promotor cultural.
Para além do visível
A acompanhar esta reflexão, a criatividade da ilustradora e artista plástica Rachel Caiano, que sempre encontra forma de ampliar o que é dito e de criar ambientes e elementos que nos põem a pensar para além do visível.
Como num dos planos em que se vêem rostos iluminados virados para baixo e para cima num fundo preto, ilustrando a ideia de que o Tempo se multiplicou “em diferentes caixas negras de luz falsa, que nos viram a cabeça para baixo — nós que temos o espírito virado para cima”. Numa clara alusão aos ecrãs de telemóvel.
Antes, já se sabia que o protagonista deste livro foi fechado a certa altura numa caixa de vidro. Deram-lhe um chicote e ele “transformou-se num rei tirano e malvado que mexe as pessoas de um lado para o outro até elas se sentirem sós”.
Mas ele próprio não está bem e pede ajuda directamente ao leitor, lembrando-lhe: “Quando contas até três, eu não sou o 1, o 2 e o três. Sou o espaço que descobres entre eles. Quando ouves tic, tac, tic, tac, não sou o tic, tac. Sou o espaço que descobres entre eles. Não estou nas velas do teu aniversário, mas no sopro que as apaga.”
Neste ano que há pouco começou, ainda vamos a tempo de dar tempo ao tempo. E um abraço, como ele aqui nos pede.