O tempo foi aprisionado e adoeceu

O que nunca pára, tudo cura, não volta para trás, que se desperdiça, aproveita ou mata, o tempo parece estar doente. Foi aprisionado numa caixa de vidro.

guia,impar,letra-pequena,ilustracao,criancas,livros,
Fotogaleria
“No princípio, o Tempo era uma árvore, era a renovada frescura das nascentes, as hastes dos corços, o cheiro dos tojos após a chuva” Rachel Caiano
guia,impar,letra-pequena,ilustracao,criancas,livros,
Fotogaleria
“A certa altura, fecharam-no numa caixa de vidro e deram-lhe um chicote. Transformou-se num rei tirano e malvado que mexe as pessoas de um lado para o outro até elas se sentirem sós” Rachel Caiano,Rachel Caiano
guia,impar,letra-pequena,ilustracao,criancas,livros,
Fotogaleria
O tempo “multiplicou-se em diferentes caixas negras de luz falsa, que nos viram a cabeça para baixo ­— nós que temos o espírito virado para cima” Rachel Caiano
guia,impar,letra-pequena,ilustracao,criancas,livros,
Fotogaleria
O dicionário regista, entre outras, esta definição do tempo: “Série ininterrupta e eterna de instantes” Rachel Caiano
guia,impar,letra-pequena,ilustracao,criancas,livros,
Fotogaleria
Capa do livro Salvar o Tempo, editado pela Livros Horizonte Rachel Caiano
Ouça este artigo
00:00
03:26

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

“O Tempo é uma criatura que já existia antes de existir. Sem ela, não dirias: ‘Era uma vez’, nem saberias quem és.” Assim começa o livro Salvar o Tempo, em que de uma forma poética se reflecte sobre essa dimensão inescapável.

O relógio e o calendário avançam independentemente da nossa vontade e percepção. Aqui, mostra-se um tempo feito de areia e aprisionado numa caixa de vidro. E até gostamos de ampulhetas. Mas há outras formas de prender o tempo.

“No princípio, o Tempo era uma árvore, era a renovada frescura das nascentes, as hastes dos corços, o cheiro dos tojos à chuva, um coral no casco de um barco naufragado, a vitória do bolor sobre o doce”, escreve-se numa página dupla ilustrada com uma criança surfando um coral (imagem no topo deste artigo). Poesia na escrita e na imagem.

Menos poético, diz-nos o dicionário sobre esta acepção do tempo: “Série ininterrupta e eterna de instantes”, “medida arbitrária da duração das coisas” ou “período contínuo e indefinido no qual os eventos se sucedem”.

É difícil descrevê-lo, mas há muito que é possível contá-lo, melhor, contar a sua passagem. E como ele passa...

Foto
“O Tempo é uma criatura que já existia antes de existir. Sem ela, não dirias ‘Era uma vez’, nem saberias quem és” Rachel Caiano

Ricardo Fonseca Mota mostra-nos os trabalhos bonitos a que o Tempo (o autor escreve em letra grande porque se trata de uma personagem) se dedica: “Transformar flores em maçãs, adoçar as mãos das avós, sossegar as medas de trigo e espreguiçar os castanheiros.”

O autor nasceu em Sintra em 1987, mas cresceu em Tábua e Coimbra. O seu primeiro romance, Fredo, venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís em 2015, As Aves não Têm Céu ganhou o Prémio Ciranda 2021 e foi semifinalista do Oceanos ­— Prémio de Literatura em Língua Portuguesa em 2021. Publicou também Germana, a Begónia (2019), A Mão e a Grandeza (2023) e Almagre (2024).

Salvar o Tempo, editado no ano que agora findou, é a sua primeira incursão nos livros para crianças e jovens e resultou de uma residência literária na aldeia do Vale da Ursa (Proença-a-Nova), em 2022.

O escritor é também psicólogo clínico, formado pela Universidade de Coimbra, e promotor cultural.

Para além do visível

A acompanhar esta reflexão, a criatividade da ilustradora e artista plástica Rachel Caiano, que sempre encontra forma de ampliar o que é dito e de criar ambientes e elementos que nos põem a pensar para além do visível.

Como num dos planos em que se vêem rostos iluminados virados para baixo e para cima num fundo preto, ilustrando a ideia de que o Tempo se multiplicou “em diferentes caixas negras de luz falsa, que nos viram a cabeça para baixo ­— nós que temos o espírito virado para cima”. Numa clara alusão aos ecrãs de telemóvel.

Foto
“Não estou nas velas do teu aniversário, mas no sopro que as apaga” Rachel Caiano

Antes, já se sabia que o protagonista deste livro foi fechado a certa altura numa caixa de vidro. Deram-lhe um chicote e ele “transformou-se num rei tirano e malvado que mexe as pessoas de um lado para o outro até elas se sentirem sós”.

Mas ele próprio não está bem e pede ajuda directamente ao leitor, lembrando-lhe: “Quando contas até três, eu não sou o 1, o 2 e o três. Sou o espaço que descobres entre eles. Quando ouves tic, tac, tic, tac, não sou o tic, tac. Sou o espaço que descobres entre eles. Não estou nas velas do teu aniversário, mas no sopro que as apaga.”

Neste ano que há pouco começou, ainda vamos a tempo de dar tempo ao tempo. E um abraço, como ele aqui nos pede.

Mais artigos Letra Pequena

Sugerir correcção
Ler 1 comentários