Biblioteca Municipal Miguel Torga: Memórias que iluminam

A biblioteca de Arganil trabalha em parceria com as escolas, com os lares e centros de dia do concelho. São muitas as atividades que promove para diferentes públicos, como pais e filhos pequenos.

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Biblioteca Municipal de Arganil João da Silva
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Na Sala Jovem da Biblioteca Municipal Miguel Torga, em Arganil, há seis computadores. Estavam todos ocupados. Nos ecrãs, viam-se imagens virtuais coloridas. Os utilizadores, cinco rapazes e duas raparigas entre os 13 e os 15 anos, jogavam em silêncio.

—​ Isto é sempre assim?

—​ Nem por isso! Às vezes, temos de vir aqui dizer-lhes que não façam tanto barulho —,​ responde Miriella Vocht, bibliotecária e coordenadora da Biblioteca Municipal Miguel Torga.

— ​E imagino que sejam o público mais assíduo…

—​ Sim, são, de facto, as crianças e os jovens que, em maior número, procuram a biblioteca, os seus serviços e atividades. Embora um número considerável nos procure sempre que têm uma curta folga no horário escolar, é durante os períodos de férias que se observa maior afluência. Durante esses períodos, temos crianças que chegam logo que a biblioteca abre portas e só regressam às suas casas à hora de fecho. Em 2018, inaugurámos um espaço destinado a jovens a partir dos 12 anos, a Sala Jovem, que, pelas suas características, é um lugar acolhedor, com uma oferta de serviços variados para este público, que vem à biblioteca para ver as suas séries preferidas na Netflix, usar a Internet e, nos períodos que antecedem os testes, estudar. Além disso, temos um programa de atividades diário, especialmente desenhado para crianças e jovens, com o intuito de lhes proporcionar uma oferta diversificada, que, de forma lúdica, lhes proporcione a ocupação dos seus tempos livres e contribua para o seu enriquecimento cultural e desenvolvimento de diversos tipos de literacia.

—​ E os adultos?

—​ O público adulto é talvez aquele que, em menor número, procura a biblioteca, e as necessidades deste são muito variadas. Temos aqueles que vêm duas ou três vezes por semana para ler jornais e revistas, outros que usam os nossos espaços para trabalho e estudo e uma grande parte vem para usar os nossos equipamentos informáticos para aceder à Internet e usar o serviço de impressão. Uma área que é também muito procurada é o fundo local, um conjunto de documentos nos mais variados suportes, cujo conteúdo se relaciona com a história, cultura, política, etnografia, entre outros, referentes a uma zona geográfica delimitada.

—​ Tem notado alguma mudança no comportamento dos frequentadores da biblioteca?

—​ Sim, há uma diferença muito evidente e acentuada na utilização, mais especificamente na forma como procuram informação. Até há cerca de 15 anos, não havia um dia em que as mesas não ficassem cobertas de dicionários, enciclopédias e livros de não-ficção. Atualmente, é muito rara a utilização deste género de obras, pois todas as pesquisas são realizadas na Internet. A tecnologia é incontornável e cada vez mais necessária, mas creio que ainda temos muito para aprender para a utilizar de modo a tirar o máximo proveito delas. Passam-se muitas horas em redes sociais e afins, e o modo como se vê e lê é muito rápido, sem reflexão ou interiorização dos conteúdos. A leitura requer tempo, e tempo é o que, aparentemente, falta a todos nós.

A Biblioteca Municipal Miguel Torga trabalha em parceria com o Agrupamento de Escolas do Concelho de Arganil e com o Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares, que, além do apoio técnico, promove o empréstimo domiciliário, forma utilizadores e realiza diversas atividades, como 'Pais e filhos: livros e ternura' ou 'Leituras partilhadas'. Paralelamente, também tem parcerias com diversas instituições de solidariedade social, que têm lar ou centro de dia, no contexto das quais realiza o projeto 'Leitura das Memórias', um serviço de leitura que conduz todos os meses sessões em torno de várias temáticas nas IPSS e Misericórdias do concelho de Arganil.

Jorge Pereira, bibliotecário, explica a iniciativa: "O projeto nasceu em 2005, inicialmente em apenas três instituições de três freguesias, devido à situação geográfica, mas depois foi alargado a outras freguesias, abrangendo atualmente todas as IPSS do concelho. E o que é? Nós levamos um baú de livros, sugerimos uma temática e fazemos uma ginástica intelectual com as pessoas, utilizando alguns jogos didáticos para recordar as memórias dessas bibliotecas vivas que estão nessas IPSS. Por exemplo, em outubro, no Dia Mundial da Alimentação, fiz um jogo didático com os bonecos, e fazemos ali uma retrospetiva do que era a alimentação deles no seu tempo, e o que há hoje, e até a introdução de alguns alimentos que existiam no tempo deles, e que hoje eles não comem, mas recordam-nos. No início do ano, fazemos um encontro de idosos, onde todas as instituições vêm representar a sua instituição com leituras, teatro e alguma dramatização. E isso é o início da atividade de cada ano. Depois, começam as sessões. Em fevereiro, temos o Carnaval, em março, o Dia da Mulher, em abril, a Páscoa, e por aí fora, e vamos trabalhando todas essas temáticas, abordando a gastronomia, as tradições, todas essas coisas. E há esta partilha importante, porque a biblioteca não é só para os mais pequenos. A biblioteca é uma casa aberta para todos."

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A biblioteca de Arganil está aberta à comunidade João da Silva

E é sobre memórias que versa o livro sugerido por Miriella Vocht para a Road Trip, mais exatamente Memórias de Pedra, de Cleo Dias, que nele partilha episódios da sua infância e adolescência na pequena aldeia de Pai das Donas, no concelho de Arganil. Cleo relata a "envolvência das serranias e dos hábitos dos povos que nela vivem (…) as pessoas de quem se fala estiveram lá, e algumas por lá continuam, as experiências foram vividas e sentidas na primeira pessoa. Apesar de ser uma estória, trata-se, na realidade, do verdadeiro retrato de um modo de vida em via de extinção, que aqui se preserva para memória futura, para que aquilo que somos hoje não se esqueça do que já fomos e por que o fomos", lê-se no prefácio assinado por António Almas.

A título de exemplo, eis o texto 'Vamos ali ajudar à debulha':

"Era com um candeeiro destes que, no antigamente, se iam fazer as debulhas de noite. Lembro-me de ir às cavalitas do meu pai, que levava também o candeeiro na mão para nos alumiar o carreiro estreito por onde seguíamos. A minha mãe, atrás de nós, a seguir-nos como a nossa sombra... E lá íamos ajudar à debulha da prima Laurinda, da capela, aflita com as farturas da terra, na casita da eira, e que já se ouvia a batucar ao longe, a cortar o zumbido da noite em que grilos, ralos e cigarras algazarram, incansáveis... Um serão daqueles tão característicos da aldeia, dos tempos em que não havia televisão e existia um espírito enorme de entreajuda das pessoas. Hoje para ti, amanhã para mim...!"

Histórias que nos iluminam. Em cada um de nós, uma biblioteca de vida.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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