Açores: Santa Maria já faz vinho certificado das suas vinhas heróicas

Dois vinhos brancos e um rosé nasceram do projecto Santa Maria Wine Lab, que visava recuperar e profissionalizar o sector vitivinícola e produzir os primeiros vinhos certificados na ilha açoriana.

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Dois vinhos brancos e um rosé com Indicação Geográfica Açores (IG Açores), lançados em Maio de 2024, são o resultado do projecto Santa Maria Wine Lab, que visava também recuperar e profissionalizar o sector vitivinícola na ilha mais velha do arquipélago açoriano. A vinha e o vinho já tiveram importância capital em Santa Maria, hoje a área de vinha em produção não ultrapassa os quatro hectares.

Mais de metade da costa de Santa Maria tem área de vinha, mas os currais que vemos desenhados nas vertiginosas encostas das suas fajãs, ali erguidos "há mais de 500 anos", estão ao abandono. Em muitos, as castas açorianas foram substituídas, há coisa de uns 150 anos, por produtores directos (videiras de outra espécie que não a Vitis vinifera).

Isabella, Herbemont e Jaquet começaram a "espalhar-se por todo o lado" nos Açores, tal e qual aconteceu em Portugal continental e na Europa. "E, no fundo, a Vitis vinifera foi completamente deixada ao abandono. As vinhas tinham uma importância muito grande nos Açores. E em Santa Maria, a ilha mais antiga dos Açores — com sensivelmente oito milhões de anos — e cujos solos são "100% argilosos", as vinhas tinham tanta importância como no Pico. Se nós formos ver todas as áreas de vinha que existem na ilha, quer em produção, quer abandonadas, tocamos praticamente nos 300 hectares", contextualiza o enólogo João Letras, que em 2022, numa viagem ao Pico, se apaixonou pela viticultura "heróica" das ilhas.

É natural de Borba e antes de agarrar uma oportunidade na Agromariensecoop (Cooperativa de Produtos Agro-Pecuários da Ilha de Santa Maria), passou pela Herdade da Comporta, no Alentejo.

Já apanhou a meio o projecto que a cooperativa submeteu ao Programa Operacional 2020 e que custou cerca de 160 mil euros (a União Europeia financiou quase 130 mil). Aprovado "em Dezembro de 2021" e com a duração de dois anos, só em 2023 conseguiu o objectivo de produzir "pelo menos um vinho apto à certificação IG Açores". "Conseguimos produzir não um, mas três vinhos certificados. Um vinho branco 100% Verdelho, um branco de uvas tintas, à base de Castelão e Bastardo, e um rosé, feito com quatro castas: Castelão, Bastardo, Merlot e Touriga Nacional."

A paisagem vitivinícola da ilha de Santa Maria é de um dramatismo que faz lembrar, ao mesmo tempo, o Douro e o Pico Agromariensecoop
Metade da costa da ilha de Santa Maria está coberta de currais Agromariensecoop
Se toda a área que já teve a cultura estivesse ainda hoje em produção, Santa Maria teria uns 300 hectares de vinha Agromariensecoop
Videira num dos currais característiscos de Santa Maria e de outras ilhas açorianas Agromariensecoop
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A paisagem vitivinícola da ilha de Santa Maria é de um dramatismo que faz lembrar, ao mesmo tempo, o Douro e o Pico Agromariensecoop

Apesar de certificar ser uma espécie de legitimação, um reclamar de um lugar na história vitivinícola do arquipélago, o principal objectivo do Santa Maria Wine Lab era mesmo recuperar e reestruturar vinhas e currais, enfim, pôr os viticultores a produzir vinho com fins comerciais. E "o foco", conta-nos João Letras, "era introduzir pelo menos 5000 litros de vinho por vindima".

Litragem que corresponde, sobretudo, a vinho com o selo do Instituto da Vinha e do Vinho (IVV), sem denominação de origem, portanto. O vinho com indicação geográfica é cerca de um quinto da produção de 2023 e as três referências certificadas foram lançadas em quantidades de nicho: do varietal de Verdelho — uma das castas nobres das ilhas açorianas, a par do Terrantez do Pico e do Arinto dos Açores — 119 garrafas, do blanc de noirs 185 e do rosé 744 garrafas.

"Ainda temos de todas as referências, mas apenas o rosé está à venda em contínuo. Dos restantes, vamos libertando algumas garrafas para venda em quantidades muito pequenas ou em provas especiais." O Verdelho custa 34,50 euros e os outros dois 26,50 euros.

Por essa razão, só conseguimos deitar mão a este último. De um rosa alaranjado, o Céptico Rosé 2023 cheirou-nos a pêra, durinha, e apresentou-se logo no nariz muito mineral, com um lado herbáceo importante. Na boca, é bem salino e fresco. De início, caiu-nos bem, pela originalidade, mas a sua acidez elevada (que, segundo João Letras, se deve ao terroir e aos solos, mas também ao facto de as vinhas em causa não terem a melhor exposição), um certo amargor no final e mesmo a sua intensidade salina afastaram-nos de ir ao segundo copo. Porventura, não o casámos com a comida certa.

Não sendo um vinho-mil-folhas — daqueles supercomplexos, que vamos descobrindo por camadas —, é uma estreia bem interessante para a Agromariensecoop, que nem sequer têm na vinha a sua principal área de actividade (esse foco está na criação e comercialização de gado bovino e na produção da meloa de Santa Maria, produto com Indicação Geográfica Protegida) e que nos deixou curiosos por provar mais coisas saídas daquele terroir.

Nomeadamente o Verdelho licoroso de que nos falou João, e "que ainda está em barrica, onde ficará cinco a dez anos". "Também é apto à certificação IG Açores."

Heróicas pelo seu declive, e não só

Actualmente, a área de vinha explorada pela cooperativa fundada em 2006, através dos seus associados ("cerca de 30 no sector vitivinícola" e com idades médias a "rondar os 43 / 44 anos"), deve andar "próxima dos seis hectares, a caminhar quase para os sete", se bem que "em plena produção sejam apenas quatro hectares". Ou seja, áreas "muito pequenas, muito pequenas mesmo". Mas a Agromariensecoop é o principal produtor de vinho em Santa Maria e o único que produz "vinhos que podem ser comercializados", nota João, que explica que há vários entraves à recuperação das áreas de vinha do passado.

A começar pelo facto de muitos locais fazerem vinho para consumo próprio e nem sequer terem as suas vinhas cadastradas. Outros terem parte dos terrenos com os tais produtores directos. No caso dos associados da Agromariensecoop, essa área é de cerca de 2,5 hectares. Parece insignificante. Mas essa vinha será apenas a que está cadastrada. "O grande problema que nós temos em Santa Maria é que as pessoas não registam as vinhas, não se registam no IFAP [Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas], nem se registam no IVV." "Mais do que fazer vinhos, mais do que plantar", a cooperativa tem tentado "legalizar as vinhas" dos seus associados. "Se nós tivéssemos as vinhas todas legalizadas, tínhamos área de vinha a perder de vista."

Outra dificuldade decorre da circunstância de muitos terrenos rústicos estarem divididos por vários proprietários. "Cheguei a ver aqui cadernetas prediais de vinhas que tinham 15 donos e três cabeças-de-casal. É praticamente impossível legalizar uma vinha dessas." Pode ser, mas vai havendo solução e quem tem interesse em explorar esses currais vai celebrando contratos de comodato.

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Daniela Piedade
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Nem tudo se atribuiu à burocracia, até porque "os apoios públicos para plantar vinha são generosos", até mesmo "para recuperar muros caídos", e a Agromariensecoop tem vindo a sensibilizar as pessoas para o valor da cultura da vinha, pedindo-lhes que a voltem a plantar nos seus currais, que comecem por recuperar essa estrutura singular e que aí plantem as castas autóctones. Mas, nos viveiristas, a cooperativa só encontra plantas de Verdelho em bacelo enxertado, razão pela qual há mais videiras desta casta do que de Terrantez do Pico ou de Arinto dos Açores na ilha. Estas duas variedades têm de ser os viticultores e a Agromariense a enxertar e, nessas condições, "a velocidade de reconversão [de uma vinha] é muito menor".

Como se não bastasse, a natureza tem ali tanto de mãe como de madrasta. Apesar de os solos serem muito férteis, com produções superiores às do restante arquipélago, e de a temperatura média na ilha ser mais elevada e de ali chover menos também, há "um problema de pragas muito grande". Nos Açores em geral, mas que "especialmente em Santa Maria" parece estar fora de controlo. A lagartixa da Madeira começou por comer "as uvas nobres, aquelas que amadurecem mais cedo", mas agora o desespero é tal, sublinha João, que "ela até já come o Herbemont, o cheiro [outra forma de os ilhéus se referirem à Isabella]..." E na vindima de 2024 as perdas de produção rondaram "os 70% a 80%". "Em videiras que tinham cinco ou seis cachos, colhi um cacho." Um assunto que a cooperativa já levou ao Governo Regional dos Açores, e que é de resto também uma preocupação na ilha do Pico.

A história da ilha é uma ajuda preciosa. Porque, "independentemente de estarem em produção ou de estarem abandonados", os antigos currais "são considerados áreas de vinha". "Fica mais fácil" recuperar as vinhas, "porque são áreas que existem há mais de 500 anos" e "não carecem de direitos de plantação nem de autorizações de plantação". Mas o caminho a percorrer é, escusado será dizer, longo. "O que lhe posso dizer é que o Pico para chegar onde está actualmente levou mais de 40 anos. Neste momento, com os resultados do Santa Maria Wine Lab, e os esforços que foram feitos, nós estamos no ano zero, basicamente."

Num ano zero auspicioso, a julgar pelo vinho que provámos. O potencial está lá. Na vinha. E na adega, que começou por ser "montada em 2022, e de forma temporária, num corredor da cooperativa" e entretanto ganhou espaço próprio, já em Julho deste ano, num armazém alugado. Graças aos fundos comunitários, mas também a uma comparticipação da Secretaria Regional da Agricultura e Alimentação, que apoiou a compra de equipamentos para vinificação e estágio.

Também está lá o postal incrível que certamente atrairá novos visitantes e potenciais novos consumidores. Basta procurar no Google por Vinhas de São Lourenço ou Vinhas do Farol da Maia para perceber o dramatismo da paisagem, numa mistura de Douro e de Pico, com o declive do primeiro e os currais do segundo. O empurrão para que mais gente queira recuperar e plantar vinha em Santa Maria pode bem vir daí, do turismo. Saiba a ilha comunicar-se bem.

Nome Céptico Rosé 2022

Produtor Agromariensecoop;

Castas Castelão, Bastardo, Merlot e Touriga Nacional

Região Açores

Grau alcoólico 12%

Preço (euros) 26,50

Pontuação 88

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Este Céptico Rosé 2023 é um dos três primeiros vinhos certificados da ilha de Santa Maria. Tem Indicação Geográfica Açores e nasce de um projecto que Cooperativa de Produtores Agro-pecuários da Ilha de Santa Maria submeteu a financiamento por fundos europeus. Um empurrão para voltar a fazer da ilha mais velhinha do arquipélago açoriano um terroir de vinhos de qualidade. E vale a pena também por isso. No nariz, fez-nos lembrar aquelas pêras durinhas. Também é mineral e apresenta notas herbáceas. Na boca, é bem salino, muito intenso, tem acidez elevada — do terroir e das vinhas em causa, que não terão a melhor exposição, explica o enólogo João Letras — e um final seco, marcado por um certo amargor. Exigente no pairing, porque poderia ser mais equilibrado. Mas, no cômputo geral, uma estreia bem interessante para a Agromariensecoop.

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