Recomeçar

Houve meses que escorreram como se tivessem durado semanas, e semanas que correram como se tivessem acenado só de passagem, com dias a escoarem como espuma num ralo. Houve dias onde couberam anos.

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"Adio o despertador. Atraso os minutos, as horas. Atraso o dia" Acharaporn Kamornboonyarush/pexels
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A luz espreita entre o estore mal fechado. O despertador toca. Recomeçar…

O dia prepara-se para acontecer, a vida prepara-se para retomar, a Terra prepara-se para mais uma volta, mais uma rodada, curvada sobre o sol que teima em comparecer, pontual… O sol e a sua arrogância em nascer uma e outra vez, mesmo quando precisávamos de nos demorar na noite.

Estou imóvel, colada aos lençóis, que montaram uma cilada e me encurralaram entre o calor quente das almofadas e o peso leve do edredom. Movo a coluna, giro o corpo, encurto a distância entre o peito e a cabeça, dobro-me em posição fetal. Fatal… como o destino: o despertador toca outra vez, programado para me espicaçar, para me lembrar que a vida tem horários a cumprir.

Tenho 42 anos e sinto-me como se o meu corpo tenro de 42 semanas estivesse imerso num ventre morno que não me quer parir: um corpo adulto dentro da placenta dos lençóis de algodão de 400 fios com friso em cetim comprados nos saldos. A idade adulta e as suas regalias: o conforto pode ser comprado. Já a vontade...

Faço as contas ao tempo que me sobra. Adio o despertador. Atraso os minutos, as horas. Atraso o dia. Atraso os pés nos chinelos, os chinelos no soalho, as mãos no interruptor, a torneira a escorrer água, a água a escoar pelo ralo, a espuma a lavar o rosto, o rosto a comparecer ao espelho —​ o espelho e a sua arrogância de nos lembrar que todas as horas do ano ficam gravadas na superfície da pele. E em profundidade também. O ano foi comprido.

Profundidade vezes comprimento… Os cálculos que vamos fazendo à área que cada ano ocupa dentro de uma vida. Há contas que só conseguimos fazer com os cabelos húmidos colados na almofada, (quando estamos dobrados e encurtamos a distância entre a cabeça e o peito), no tempo oco do amanhecer em termos os ouvidos colados à cama como se quiséssemos escutar melhor o que têm para nos dizer os sonhos que sonhámos durante a noite.

Como é que já passou um ano? Como é que os dias foram tão demorados, e o ano foi tão breve? Como? Foi provavelmente deitado na cama, no rescaldo das compras de Natal, e depois do fecho da faturação do fim do ano, que o Einstein se lembrou da Teoria da Relatividade…

Houve meses que escorreram como se tivessem durado apenas semanas, e semanas que correram como se tivessem acenado só de passagem, com dias a escoarem como espuma num ralo.

E houve dias onde couberam anos. Mesmo que estes não coubessem no volume das horas. Dias em que os anos que já tinham passado se acotovelaram para comparecer, atrasados mas presentes, a mostrar que o Passado nunca deixa de existir. Apanhada na curva. Do tempo. Dos acontecimentos. O espaço-tempo pode ser curvo, mas há dias com esquinas bicudas. Há dias que arranham.

E houve dias impossíveis, com horas em excesso, com minutos que não terminavam, a penhorar o tempo da noite, na qual o cansaço — esse devedor insolvente — ficaria sempre em débito ao sono. Porque mesmo que o sol se teime em deitar cedo, prossegue a luz que inventámos para afastar a escuridão total dentro da toca, para afastar os animais selvagens. Prossegue o ecrã do telemóvel, o monitor luminoso do computador, a tocha que afasta a escuridão, que enfiamos debaixo do colchão e nem sempre queremos ver.

Recomeçar. O despertador do telemóvel volta a tocar. Barafusto, com o meu castigo autoinfligido de toque sofisticado, derrubo involuntariamente o copo de água vazio que rola para debaixo da cama, adio o despertador por mais dez minutos. O tempo é relativo. Depende do movimento do observador. Não me movo. Para ver se o tempo não passa, para tentar que os minutos se estiquem, e não fiquem todos comprimidos num segundo.

Não uso comprimidos. Nem para dormir nem para acordar. Bebo café. Compro um despertar encorpado, aveludado. O despertar pode ser comprado… Já o desejo.

Mais logo vão engolir-se as passas, como se fossem comprimidos. Desejos em cápsulas. Pílulas de recomeço. Não gosto de uvas passas. São moles, colam-se nos dentes. Não gosto de ter os meus desejos colados aos dentes. Não gosto de os engolir como se fossem 12 comprimidos. Tenho sempre medo de não acertar, de falhar nos desejos da mesma forma que não acerto nos números de totoloto. De me faltar um desejo importante por esquecimento. Ou por cansaço. De desperdiçar um desejo com a pressa de o engolir. Prefiro demorar-me. Prefiro sorver os desejos com tempo. Prefiro deixá-los a derreter na boca… Para os saborear melhor, na curva entre o palato mole e o céu da boca, que tem as suas constelações privadas, premonições de sentidos que só saberei decifrar depois do Futuro acontecer.

O estômago ronrona como um gato preguiçoso. Em jejum. Reclama do vazio. Mesmo que quisesse permanecer debruçada sobre a barriga, as células reclamam, a biologia reivindica alimento. Não me dou bem com essas dietas de jejum intermitente. Um corpo que nunca se sacia. O Amor. Intermitente. Nunca sacia.

Recomeçar… Há memórias que teimam em colar o corpo à cama, há um calor quase extinto na botija de água que teima em colar os pés ao lençol, mesmo sabendo que ao atravessar da imprevisibilidade do novo dia, o Presente tratará de apresentar novas contas, prontas a consumir, numa azáfama, e que o Futuro trará memórias renovadas, frescas, mais intensas que as antigas. Mas ainda assim… Sinto uma pontada entre a preguiça e o saudosismo, entre as vértebras L4 e L5. O excesso de nostalgia prende a articulações, impede a destreza de movimentos. Pode causar hérnias.

Dentro de umas horas o calendário recomeça. Cíclico. Uma circunferência de 360º, um ciclo de 365 dias. Retomamos do dia 1, como se fabricássemos uma ordem fictícia para a lotaria imprevisível dos dias. Como se apagássemos os números do quadro, e começássemos com uma tela em branco.

Recomeçar. Tento morder a ideia mas a palavra não rola. A ideia de voltar ao início parece-me contrafeita, assim, no meio do Inverno, a limpar o tabuleiro a meio do jogo, no meio da Vida. Como se ouvisse um apito a meio da corrida e alguém gritasse na pista: “Agora de volta ao início!” Quando corro tantas vezes sem saber sequer onde fica a meta. Quando tantas vezes a meta e linha de partida são apenas dois fios emaranhados, duas linhas de cabelo embaraçado. O Futuro nunca está em jejum.

O ano até pode ser novo mas o tempo vem sempre a somar. Soma-nos coisas. Por vezes subtrai outras. Por vezes deixa vazios, buracos negros, e depois multiplica-nos, criam-se universos inteiros, no espaço de um átomo, onde parecia não caber nada, num cantinho escuro da toca, do quarto, do colo, do copo, da solidão.

Desligo o despertador. Meto o pé fora da cama como quem testa a temperatura da água do mar. Mas a medo... Quem nunca caiu numa cilada de um novo dia que atire a primeira pedra!

Logo, em vez de recomeçar, prefiro somar. Seguir, Multiplicar. Não retomo de uma tela em branco, mas de um chão cheio de cores, cheio de camadas tinta, como um pintor que insiste em pintar sobre as  camadas antigas na tela. Sobre a textura imperfeita, rugosa e volumosa que o Passado deposita.

De preferência a saborear as horas, a deixar derreter os minutos no céu da boca, a saciar o desejo com novas faltas, e a sonhar novos desejos. A teimar em ganhar o sol que comparece, mas sem medo escuridão onde se esconde a verdade generosa que traz mais cores.

E a deixar que o ano se demore, na pele e em profundidade.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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