Biblioteca Municipal Padre Manuel Antunes: um poliedro a viajar no tempo
O poliedro alberga itens importantes. A caixa foi fechada a 7 de julho de 2024 e será aberta em 2042. Já o livro proposto foi escrito pelo patrono da biblioteca: Repensar Portugal.
Na receção da Biblioteca Municipal Padre Manuel Antunes, à esquerda do balcão em lugar de destaque, há um poliedro onde se lê "Maratona de Leitura". Nas várias faces, há frases de diversos escritores e pensadores: "Sei que me espera qualquer coisa, mas não sei o que será que me espera", Álvaro de Campos; "A diferença entre um santo e um pecador é que cada santo tem um passado e cada pecador um futuro", Oscar Wilde; "O futuro não é mais que provável porquanto o pensamento não só relaciona, mas cria", Agostinho da Silva.
Ana Sofia Marçal, diretora da biblioteca, explica a atividade mais relevante organizada pela instituição: "A Maratona de Leitura teve este ano a sua 12.ª edição, que foi dedicada ao tema Resistência e Liberdade. É um festival literário que já ganhou o seu lugar entre eventos congéneres, que leva a cultura a todo o concelho da Sertã, mesmo aos lugares mais afastados da sede, não deixando ninguém de fora. É, por estas e outras razões, a iniciativa que organizamos que tem mais impacto na sociedade."
Percebe-se facilmente porquê. Ao longo dos três dias da edição deste ano, cerca de 6500 pessoas participaram nas várias atividades: passeios literários, narração de histórias, sessões de leitura, conversas com escritores, workshops e espetáculos musicais.
O poliedro da "Maratona de Leitura" alberga itens importantes, como expõe David Ribeiro, colaborador da biblioteca: "Tem uma mensagem do presidente da câmara para o futuro, um jornal do dia da maratona, um telemóvel, uma fotografia da equipa da biblioteca, o programa da maratona de leitura, uma garrafa de medronho, um talão de compras do supermercado, sementes de girassol das catorze freguesias, um relógio que marca a hora que foi selada a caixa (10 da manhã) e uma mensagem de cada um de nós para a equipa de 2042, o resto é segredo."
A caixa foi fechada a 7 de julho de 2024 e será aberta a 7 de julho de 2042, "isto se as pessoas que estiverem nessa altura à frente da biblioteca assim o desejarem", explica Ana Marçal. E porquê? "Achámos que era uma distância satisfatória para olhar para o passado", responde a bibliotecária. Até lá, é retirado um cadeado por ano, sempre no dia 7 de julho.
Além deste grande evento, decorrem anualmente, a partir da Biblioteca Municipal, vários projetos que, embora frequentemente despercebidos, têm contribuído significativamente para aumentar o número de leitores, combater à iliteracia e formar públicos. Ana Sofia Marçal destaca alguns: "Desde logo, o ‘Ler em Todos os Sentidos’, dirigido aos alunos a partir dos 14 anos do Agrupamento de Escolas da Sertã, o ‘Escultores de Imagens’ e o ‘Já não somos mais crianças: promoção do livro e da leitura para jovens leitores’, também para a mesma faixa etária, mas destinados à Escola Profissional da Sertã e Instituto Vaz Serra, e ainda ‘Manual Para Criar um Jardim em Casa’, direcionado a utentes de dois lares de idosos do concelho."
Os três primeiros projetos são colaborativos, ou seja, os alunos são convidados a descobrir novas leituras e abordagens para diversos textos literários. O texto poético é a base de trabalho, promovendo reflexão interna e autoconhecimento, e permitindo partilha de textos e experiências pessoais. Quanto ao 'Manual para Criar um Jardim em Casa', Ana explica que se trata de "uma iniciativa multidisciplinar, baseada na leitura e escrita, iniciada durante a pandemia, que utiliza ferramentas digitais para conectar utentes de instituições particularmente afetados pelo isolamento social, permitindo trabalho contínuo e a produção de materiais para a Maratona de Leitura".
— Nota boa afluência de crianças e famílias?
— A afluência é boa, mas não é a desejada. Temos tentado diversificar a oferta para as famílias, para criar o hábito de frequentar a biblioteca, mas ainda não chegámos a números que nos deixem satisfeitos. Realizámos um inquérito a encarregados de educação de alunos do 1.º ciclo para perceber por que não traziam as crianças à ‘Hora do Conto’, que ocorria no último sábado de cada mês. A maioria das respostas indicou falta de tempo ao fim-de-semana, ocupado com outras tarefas. E aí percebemos que o livro e a leitura não eram prioridade. É crucial que os pais vejam a leitura como um investimento no desenvolvimento dos filhos. Acho que estamos a melhorar, mas ainda não chegámos lá. Atualmente, temos a iniciativa mensal ‘Cérebro em Ação’, com a presença de um técnico especialista, uma atividade de estimulação cognitiva baseada em livros e dirigida a famílias, e que tem tido uma boa adesão.
Ana Sofia Marçal não hesitou quando lhe pedi que sugerisse um livro para a Road Trip Literária: "Tem de ser o Repensar Portugal, da autoria do padre Manuel Antunes, o patrono da nossa Biblioteca Municipal. Ele é conhecido como o pedagogo da democracia e, neste ano em que se assinalam os 50 anos da democracia em Portugal, considero que este texto faz todo o sentido dentro deste contexto. É um texto curto, qualquer pessoa o lê com facilidade. Fala de conceitos muito importantes, mas que o estilo do padre Manuel Antunes transformou numa linguagem simples e acessível a todos, e que nos ajuda a refletir sobre os grandes conceitos ligados à democracia, relacionados com a economia, a cultura e a educação. Houve quem dissesse que devia ser um livro de cabeceira dos políticos em Portugal, justamente pelos muitos assuntos importantes que aborda e que, para quem gere e cuida das pessoas nos territórios, é um livro que pode ser um excelente ponto de partida para a reflexão. Eu não sou política, sou bibliotecária, mas é um livro a que recorro várias vezes e que já me ensinou muito, sobretudo no que diz respeito a estas questões de cidadania, cultura e educação."
Destaco um texto escrito em maio de 1974:
"De um dia para o outro tudo pareceu novo. Era o fim das palavras longamente proibidas, dos gestos apertadamente contrafeitos, de uma certa mentira institucionalizada, do terror invisível mas presente em toda a parte. Era a possibilidade do termo do isolamento internacional, daquele ‘orgulhosamente sós’ que é a contradição mesma do mundo em que vivemos. Era o surpreso despertar de um pesadelo de anos, cada vez mais denso, cada vez mais escuro. Era o emergir da 'apagada e vil tristeza' para um mundo outro, o mundo da esperança na sua dimensão histórica tangível. Era o regresso à pátria comum de tantos que dela tinham sido expulsos, porque a amavam de outra maneira, mas dos quais se nos dizia, infatigavelmente, que a odiavam.
A revolução foi a festa. Festa dos cravos de maio, da confraternização do Povo e das Forças Armadas, do entusiasmo coletivo, de uma certa irmandade não fingida, de uma vasta disponibilidade à abertura, de uma, por vezes, cândida e larga espontaneidade.
E, de repente, o País pôs-se a falar."
A falar e a conversar. O que foi precisamente o que fiz na Sertã com Carlos Miranda, presidente da câmara municipal, a quem perguntei como é que a autarquia olha para a biblioteca e para a cultura em geral.
"A biblioteca é um elemento central no nosso projeto de desenvolvimento, porque nós queremos um território que seja diferenciado. O que conseguimos fazer através da leitura e da escrita resulta de tal forma que esta biblioteca tem uma atividade muito forte ao longo do ano em vários níveis". Sem surpresa, Carlos Miranda referiu a 'Maratona de Leitura' como o evento de maior procura no contexto cultural: "Para ter uma ideia, nesta última edição, em três dias, tivemos mais de 80 convidados e mais de 80 eventos! E o evento tem uma marca muito própria que é a sua dispersão pelo território, ou seja, não fica aqui fechado dentro da biblioteca ou na Casa da Cultura. Vai a todo o território, não só para levar os livros, mas também como forma de dar a conhecer esse território. Fazemos eventos em aldeias muito pequeninas, em espaços completamente naturais e selvagens, junto a ribeiras, na floresta, em plena albufeira de Castelo de Bode….
O autarca destaca ainda a contínua oferta cultural: "Nós queremos que o concelho da Sertã seja reconhecido por ter uma oferta cultural importante e público para a cultura. Entendemos a cultura como algo que é para todos. E isso tem funcionado. Prova disso é que a Casa da Cultura está quase sempre cheia, inclusive com a necessidade de reserva de bilhetes."
Deixei a Sertã a questionar-me, como se estivesse absorvido na leitura de um livro intrigante, sobre que segredos guardará o poliedro da Maratona de Leitura...
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990