“No Brasil, há a ideia alucinada de que um trisal pode formar família”, diz acadêmica

Em Portugal, para um congresso na Universidade de Coimbra, Regina Beatriz afirma que anteprojeto em discussão no Senado provoca distorções no Código Civil brasileiro, como reconhecer um trisal.

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Anteprojeto que trata da revisão do Código Civil brasileiro está em discussão no Senado Senado Federal/ Brasil
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O anteprojeto que propõe mudanças no Código Civil brasileiro, se aprovado da forma como está, “provocará sérios problemas de interpretação da lei”, diz a advogada e professora Regina Beatriz, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). “Vieram com ideias alucinadas no Brasil de que caberia, no Código Civil, o poliamor, como se os trisais pudessem formar uma família”, disse ela, que participou, recentemente, de um congresso realizado na Universidade de Coimbra. “A Constituição define que o Brasil é um país monogâmico”, acrescentou.

Regina afirmou, em entrevista ao PÚBLICO Brasil, que uma das propostas apresentadas no anteprojeto de reforma do Código Civil prevê que os juízes terão livre arbítrio para definir se o registro de uma criança poderá ser feito nos nomes das pessoas que formam o trisal. Essa porta foi aberta, segundo a presidente da ADFAS, porque não foram definidos os parâmetros para a definição do parentesco socioafetivo.

“O Brasil já permite, de forma inédita, que um padrasto possa ter seu nome inserido numa certidão de uma criança como pai socioafetivo, quando o pai biológico está ausente, é omisso ou abandonou essa criança. Mas isso é completamente diferente de um trisal. O padrasto vive numa casa diferente da do pai biológico da criança. No caso do trisal, estão os três sob o mesmo teto, um dia, a mãe dorme no quarto de um pai, no seguinte, no do outro. Não tem como uma criança explicar isso na escola”, ressaltou Regina. “A sociedade brasileira rechaça a poligamia”, emendou.

Doação para amantes

Segundo ela, o princípio que rege o direito brasileiro é o da monogamia. “Portanto, a proposta que está tramitando no Senado brasileiro deixa um furo. Conseguimos implementar a monogamia em outros dispositivos do anteprojeto, mas não na questão do parentesco socioafetivo”, destacou. “Há, ainda, outro problema, que trata de doações para amantes, o que é proibido, no Livro de Família, quando realizadas em vida, mas não são vedadas, no Livro de Sucessões, as deixadas por testamento para o cúmplice do adultério”, complementou.

Para Regina, “esses furos” surgiram porque a revisão do Código Civil, que será apreciada pelos senadores, ocorreu de forma muito rápida numa Comissão externa nomeada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. “Tudo foi feito em apenas sete meses. É muito pouco tempo para se debater tantas normas de uma legislação”, frisou.

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A advogada e professora Regina Beatriz afirma que "os furos no anteprojeto de reforma do Código Civil decorrem do tempo muito curto para se debater tantas normas de uma legislação" Arquivo pessoal

A presidente da ADFAS assinalou, ainda, que há vários outros buracos no anteprojeto, como a proposta que equipara a união estável ao casamento civil e a que trata da prestação compensatória, uma espécie de “indenização” a um dos cônjuges em caso de divórcio. “Se a união estável for equiparada a casamento, porque existir os dois conceitos? Não faz o menor sentido”, assinalou. Na visão dela, os maiores beneficiados com essa confusão serão os advogados, que “se aproveitarão de uma lei mal feita”.

No caso da prestação compensatória, o anteprojeto não prevê requisitos para se definir a “indenização” para o cônjuge que abriu mão de muita coisa durante a relação. “Sem parâmetros, os juízes terão livre arbítrio para definir como será a compensação, que deve ocorrer em muitos casos. Mas se o anteprojeto for aprovado como está, o Brasil criará o que chamo de celibato sentimental. As pessoas vão optar pela solidão por medo de ter um relacionamento que pode custar parte do patrimônio por falta de regras claras”, disse.

Hoje, segundo Regina, a prestação compensatória segue a jurisprudência baseada no modelo francês, que norteia os acórdãos do ministro Antônio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Há um paradigma, pelo qual é preciso que haja a anulação de um dos cônjuges para o crescimento profissional e patrimonial do outro. A mulher que abriu mão da profissão para cuidar da casa, dos filhos, tem direito a compensações, mas com regras”, ressaltou.

Código português

No entender da presidente da ADFAS, o Código Civil português tem a acrescentar no debate que se trava no Brasil em torno do anteprojeto de reforma da legislação brasileira. “O que vemos em Portugal é a segurança jurídica. E eu comparo o Código Civil português com o anteprojeto, porque o Código Civil vigente no Brasil também tem segurança jurídica, ainda que precise de atualização”, assinalou. “Temos de aproveitar o que têm de bom no Código Civil de Portugal para confrontar o que está sendo proposto no Brasil e pode resultar em confusão.”

A professora reconheceu que também na legislação portuguesa há falhas. “No caso da união estável, por exemplo, as garantias em Portugal são restritas, limitando-se ao direto à moradia para a família e de alimentação, se comprovada a necessidade. E para por aí. Não prevê, como no Brasil, os efeitos sucessórios nem de regime de bens”, afirmou. Quer dizer, em Portugal, no caso de morte de um dos cônjuges, o outro não terá direito à herança. O país também não tem uma legislação tão rígida, de proteção às mulheres contra a violência doméstica, como a Lei Maria da Penha, no Brasil.

“O que digo é que o Código Civil português pode ser uma inspiração para o debate no que tem de bom. Vamos aproveitar o que há de melhor e não deixar que os advogados ganhem dinheiro por causa de uma legislação cheia de furos. Digo isso como advogada e acadêmica há 44 anos”, frisou Regina, que foi uma das figuras centrais do debate que levou o Congresso a aprovar, em 2002, o Código Civil em vigor no Brasil.

“Participei, com muitos juristas de peso e com o então relator do projeto, o deputado Ricardo Fiúza, para se chegar ao melhor projeto”, contou a presidente da ADFAS. “Já naquela época sabíamos que precisávamos avançar em alguns pontos, como o casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas, se a Câmara mexesse no projeto aprovado no Senado, a discussão se prolongaria e o Código demoraria mais para ser aprovado”, lembrou. “É importante deixar claro que o Código Civil rege a vida dos cidadãos antes do nascimento deles, depois do nascimento e depois da morte”, enfatizou.

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