Olhares sobre o território e o mundo
O evento Encontros Imagem & Território, organizado pelo Centro de Estudos Ibéricos, realizou-se na Guarda, sob o lema “Cartografias da Memória em Tempos de Incerteza”.
“Ser artista não é apenas pegar num pincel; é, através do pincel, expressar o que se pensa. Da mesma forma, com uma máquina fotográfica, podemos capturar com o nosso olhar o que se pensa, o que se sente, e transmiti-lo. Alguns de nós, seres humanos, somos muito mal-educados, especialmente os políticos, e estamos a destruir o planeta.”
As palavras são de Victorino García Calderón, fotógrafo de Retortillo, na província de Salamanca. Durante os seus 53 anos de carreira, Victorino dedicou-se a todas as áreas da fotografia — paisagem, retrato, natureza morta, pintura e fotopintura — e foi professor de fotografia, desenho e pintura durante 35 anos. “Agora que estou reformado, mantenho a vontade de lutar para integrar a fotografia como uma arte dentro das artes. Ainda há um grande sector da sociedade que não aceita a fotografia como arte porque acha que é só carregar num botão, e isso não é verdade.”
Ouvi este desabafo durante o VII Encontros Imagem & Território, que se realizou entre os dias 6 e 8 de dezembro na Guarda, organizado pelo Centro de Estudos Ibéricos (CEI). O evento, este ano sob o lema “Cartografias da Memória em Tempos de Incerteza”, juntou mais de 50 intervenientes diretos, entre fotógrafos, artistas, arquitetos, jornalistas, geógrafos e investigadores.
“Os ‘Encontros Imagem & Território’ surgem a partir do concurso ‘Transversalidades - Fotografia Sem Fronteiras’, criado em 2011 de forma amadora, espontânea, assente numa ideia, eu diria quase romântica, que todos nós somos fotógrafos. Logo na primeira edição, e ao contrário das nossas expectativas, que era aparecerem fotografias banais, o vencedor foi o Alfredo Cunha, o que colocou isto logo num patamar altíssimo”, explica Rui Jacinto, membro da Comissão Executiva do CEI indicado pela Universidade de Coimbra. A iniciativa passou depois por um processo de internacionalização. “O número de concorrentes foi subindo, desde os cem da primeira edição até aos mais de 600 deste ano, com representações de representados 60 países e os cinco continentes.”
Apesar do sucesso, os responsáveis do CEI achavam que faltava alguma coisa ao concurso. “Nós fazíamos uma exposição, mas ficava aqui, lançávamos um catálogo, que podia ser bonito, mas esgotava-se no tempo e não havia um debate, nenhuma problematização sobre esta ideia da importância da imagem para ler e interpretar os territórios. E surgiu assim a ideia de associar ao ‘Transversalidades’ o ‘Encontro Imagem & Território’ que há sete anos debate, a partir da fotografia, diferentes temas e problemas. Transversalidades é mais do que uma palavra, é um conceito inclusivo, que dialoga com várias geografias e várias disciplinas e que é agregador”, reflecte Rui Jacinto, uma das duas grandes almas do CEI.
A outra é Valentin Cabero, antigo representante da Universidade de Salamanca na Comissão Executiva do CEI, que também partilha a sua visão do evento: “O Encontro desempenha um papel fundamental na ligação ibérica e internacional. O concurso ‘Transversalidades’ é rigoroso e tem um espírito reivindicativo sobre o mundo que estamos a construir. O CEI, com os seus três princípios, conhecimento, cultura e cooperação, reforça estas conexões com o mundo que nos rodeia, especialmente o ibérico. Todos os anos, um número significativo de pessoas participa, tanto a nível cultural como social, refletindo sobre os problemas que enfrentamos, desde as alterações climáticas até os conflitos sociais e as incertezas políticas, atuando como um ponto de ligação cultural e oferecendo uma visão muito atual do mundo.”
Foram submetidos ao concurso cerca de 600 portfolios, num total de cerca de cinco mil imagens, em torno de quatro temas: Património natural, paisagens e biodiversidade (o vencedor foi Seyed Hamed Mousavi, do Irão); Espaços rurais, agricultura e povoamento (Xavier Ferrer Chust, de Espanha); Cidade e processos de urbanização (António Pedrosa, de Portugal); e Cultura e sociedade: diversidade cultural e inclusão social (Manolo Espaliú, de Espanha).
António Pedrosa, um fotógrafo documental cujo trabalho explora temas de desigualdade social e a relação entre as pessoas e o ambientem faz o contexto do trabalho vencedor: “Foi realizado na Quinta dos Ingleses, em Carcavelos, onde mais de 20 trabalhadores se estabeleceram para escapar ao aumento dos custos da habitação. Liderados informalmente por Márcia e Andreia, duas trabalhadoras de limpeza de alojamentos locais que ganham o salário mínimo, optaram por acampar num terreno abandonado, o único grande espaço verde entre Lisboa e Cascais. Contudo, no início de 2024, tiveram de sair por causa do início das obras de um novo condomínio, apesar da oposição da população local. Este grupo de ‘sem-abrigo’ não corresponde à definição habitual. Era formado por pessoas com emprego que simplesmente não conseguiam encontrar soluções dignas no mercado de arrendamento de Lisboa e decidiram viver em tendas e autocaravanas para poupar e viver de forma digna. Neste momento, o grupo está desfeito. Márcia e Andreia, por exemplo, compraram uma autocaravana com o dinheiro poupado e vivem agora num terreno abandonado na zona de Lisboa.”
Além das quatro categorias mencionadas, existe ainda o Apoio Especial Países Africanos de Língua Portuguesa, conquistado por Albino Mahumana, de Moçambique, e o Apoio Especial Português, atribuído a Alina Zaharia. Nascida na Roménia, Alina vive em Portugal desde 2008 e venceu com o portfólio “Techari”, submetido no tema Cultura e sociedade: diversidade cultural e inclusão social.
Alina esclarece o contexto e a abordagem: “É um trabalho sobre uma família de etnia cigana em Camarate, Lisboa, que pertence à associação ‘Techari’, cuja missão é promover a integração na sociedade através da educação e da cultura. Graças a parcerias com câmaras municipais e juntas de freguesia, a Techari facilita a inserção de crianças e adolescentes nas escolas e desenvolve atividades de dança, música e desporto, assim como ações comunitárias de apanha de lixo. Num contexto onde a comunidade cigana é frequentemente associada a conotações negativas, procuro evidenciar o lado positivo deste projeto, elogiando a iniciativa e o esforço da comunidade para se integrar na sociedade, mantendo as suas tradições. Este portfólio retrata momentos de convívio de uma família de etnia cigana, refletindo os seus valores e identidade. Podiam ser de qualquer outra família, porque é isso que me interessa na fotografia: procurar o lado bom, a simplicidade e, acima de tudo, evidenciar momentos aparentemente banais e insignificantes.”
Ainda no feminino, mais dois depoimentos, um de cada lado da fronteira:
“É muito importante o diálogo que se gera aqui para poder aprender e também desenvolver a compreensão em torno da imagem, da fotografia, do território e da proximidade que existe entre Espanha e Portugal, reforçando os laços que nos unem. Somos todos ibéricos”, declara Susana Pérez Gilbert, fotógrafa de Salamanca. “Para mim, a fotografia é uma forma de comunicar com os outros e expressar a maneira como vejo o mundo, as minhas preocupações e aquilo que me interessa elogiar ou criticar. Tem esses dois lados. É um local onde me sinto bem e é também por isso que gosto deste evento, que se foca em pensar o mundo e a sociedade em que vivemos”, afirma a fotógrafa Luísa Ferreira.
A qualidade elevadíssima das fotografias a concurso e as diversas exposições do evento mereciam destaque, mas uma análise mais detalhada de todas as obras tornaria a crónica ainda mais extensa. A título pessoal, gostaria de realçar o trabalho de Alexandre Costa, que está integrado na exposição “Memória. Que futuro para o nosso passado?”, com curadoria de Catarina Flor e que inclui ainda fotografias de João Pena.
Alexandre Costa elucida o conjunto de fotografias: “Embrenhei-me nas ruas da cidade em dias do seu característico nevoeiro e explorei o sítio onde cresci, as minhas origens. É muito gratificante apresentar aqui uma exposição no meio destes grandes nomes da fotografia. É um reconhecimento que sabe bem. O tom mais escuro das fotografias não está relacionado com o tema da exposição. É, na verdade, a minha linha fotográfica, que tende a ser mais obscura e taciturna.”
Ao contrário de Alexandre, Victorino García Calderón já quase só utiliza o telemóvel para fotografar: “Durante 50 anos andei com máquinas fotográficas de dois ou três quilos penduradas ao pescoço e ao ombro, pelo que o meu pescoço está muito mal. Agora, uso o telemóvel, que pesa muito pouco e tem resolução mais do que suficiente. As últimas três exposições que fiz foram apenas com fotografias tiradas com o telemóvel.”
Na Guarda, a partir da fotografia, estabeleceu-se um diálogo que interpretou os territórios e o mundo atual, explorando as suas maravilhas, conflitos e incertezas.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990
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