Biblioteca Municipal Alexandre O’Neill: Sorrisos entre letras
Uma das actividades desta biblioteca leva roupas e bonecos à maternidade de Abrantes e ao IPO de Lisboa. Um projecto para o qual todos podem contribuir. Chama-se “Sorrisos entre letras”.
Emoldurada pela confluência de dois rios, Tejo e Zêzere, Constância apresenta uma fisionomia ímpar, com o casario branco a entrelaçar-se harmoniosamente com a encosta que a acolhe. A vila tem o seu nome ligado ao de Luís Vaz de Camões, que aqui viveu durante algum tempo. Todavia, a biblioteca municipal recebeu o nome de Alexandre O'Neill, nome grande da poesia portuguesa.
E não só, como me esclareceu Nuno Menezes Ferreira, bibliotecário: “Esta biblioteca foi inaugurada em 1994 e, em 2006 ou 2007, salvo erro, esteve cá o Luís Dias, um bibliotecário que fez um excelente trabalho. Como tínhamos a biblioteca particular do Alexandre O’Neill, ele propôs ao presidente da câmara mudar o nome da biblioteca, o que foi importante para colocá-la no roteiro literário, digamos assim. Esta coleção do Alexandre O'Neill foi uma doação do seu primogénito. Alexandre O’Neill tinha uma casa arrendada em Constância, onde passou os últimos tempos até morrer, em 1986. Ele vinha para Constância desde o início da década de 70, trazido por amigos ligados às artes e à literatura. Há muitos livros aqui que não são claramente dele, mas sim das mulheres com quem viveu, o que torna a coleção ainda mais interessante. Estes livros começaram a estar disponíveis para o público nas décadas de 80 e 90, mas, como não havia sistemas antifurto nem informatização, o funcionamento baseava-se em papéis e apenas havia um funcionário, perderam-se alguns livros deste fundo.”
— Ou seja, o espólio de Alexandre O’Neill seria ainda maior?
— Sim, certamente. A biblioteca foi durante anos acompanhada por alguns bibliotecários que não estavam aqui o tempo inteiro. Era ainda o tempo dos técnicos curiosos. Havia um colega, o Francisco Lopes, que se está a reformar, e que era bibliotecário em Abrantes. Ele foi muito importante para a história das bibliotecas públicas no Ribatejo, dando assistência a várias bibliotecas, chegando a oferecer apoio a oito ao mesmo tempo, mesmo que fosse apenas por telefone. Porquê? Porque as câmaras não conseguiam ter bibliotecários. Não havia muitos técnicos, e os poucos que existiam estavam concentrados em Lisboa, Porto e uns poucos em Coimbra. O restante do país carecia de técnicos e não formava profissionais suficientes. Ainda hoje há bibliotecas que não têm um técnico superior. O Francisco Lopes fez o melhor que pôde para estruturar a situação. A biblioteca continuou aberta ao público durante bastante tempo, mas não se adquiriam novos livros.
— O que parece ser ainda um problema atual em algumas bibliotecas…
— Há muitos municípios que não investem no fundo documental. Algumas bibliotecas podem não ter tanto sucesso porque simplesmente não compram nada, às vezes há décadas. Acham que o livro não tem prazo de validade, mas tem. Notamos isso imediatamente, quando adquirimos novidades, o nível de empréstimos e a frequência das pessoas à biblioteca aumentam. Quando não temos novidades, há uma queda.
— E vem gente de fora estudar este fundo do Alexandre O’Neill?
— Começa a vir mais. Este ano, tem vindo muita gente, sobretudo do Brasil. O Alexandre O'Neill tinha muitas relações de amizade e de trabalho com o Brasil. Ele também era editor e editou muitos livros de autores brasileiros, razão pela qual acredito que há bastante interesse. Além disso, há também procura por parte de pessoas interessadas em publicidade, pois ele foi um grande publicitário.
Como sugestão de leitura, Nuno Menezes Ferreira fugiu ao óbvio e indicou-me o romance Antes que a Luz apague a escuridão, de Telmo Mendes. Logo no segundo capítulo, intitulado “Libertação”, destaco o parágrafo inicial: “Ser escritor é pertencer a uma espécie maldita capaz de se alastrar por fissuras. É possuir o peito apinhado de intrusos, rostos, vozes e sombras ansiosas por sossego, enquanto se enfrenta folhas desabitadas, uma e outra vez, na busca da frase que irá desfiar o mundo inteiro. Por vezes surge um barulho, mas não chega ninguém. Ouvimos algo a pairar no ar, porém é apenas um sussurro qualquer a afundar-se. E nós ficamos ali, deixando a vida toda intermitente, sem antes nem depois, acreditando convictamente que essa frase vai chegar.”
O livro retrata, em grande parte, aquilo que é pessoal e muitas vezes difícil de comunicar, como a incerteza e a solidão:
“Semana após semana, todos os sábados, ao final da tarde, Gabriela arranca em direção ao Sobradinho, uma terriola recôndita e de existência quase imaginária, apenas possível de alcançar através de um trilho de terra batida que cruza com a estrada que vem da cidade, junto ao acampamento dos ciganos, e depois segue para sul por vertentes e falésias a bordejarem o mar durante três quilómetros. Determinadas fações, gente mais conservadora, chamam ao carreiro Trilho do Mau Caminho. Dizem que se trata de um atalho para o Inferno, um local impregnado de canalhas e instalado numa cova muito funda onde as copas das árvores não deixam entrar a luz nem ver o céu. Mas isso são mentiras, conversas de gente que nunca lá foi. Na verdade, o Sobradinho assemelha-se a um purgatório onde se dorme durante o dia e se procura o tempero da vida à noite. Um refúgio sem juízes nem xerifes, no qual homens, mulheres e gente que não é uma coisa nem outra, vai para suspender os hábitos e procurar uma chama que se demore mais um pouquinho e abafe a malvada da solidão. Tudo o resto que se diga são meras invenções, boatos de gente confundida por um Deus mal informado e coisas de assombrar.”
Já perto do fim da minha visita à biblioteca, na sala infantil, fotografei um quadro bordado onde se lia “Sorrisos entre letras”. O projeto foi criado por Sílvia Brota, técnica bibliotecária, que teve a ideia de pedir ajuda financeira à Câmara Municipal de Constância e às respetivas juntas de freguesia para comprar linhas e lãs e convidar pessoas a inscreverem-se para fazer bonecos. “Inicialmente, fazíamos só bonecos em crochê e, depois de desinfetados e colocados em embalagens específicas, entregávamo-los às crianças internadas no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. Entretanto, foi assinado um protocolo entre o IPO e a autarquia de Constância. Posteriormente, o projeto avançou um bocadinho mais e começámos também a entregar bonecos na Maternidade de Abrantes. Mas como havia senhoras que não conseguiam fazer bonecos em crochê, começámos a comprar lãs para fazer mantinhas e todo o tipo de roupinhas para recém-nascidos, e alguns bonecos pequeninos, inclusive o polvo do amor, próprio para os bebés recém-nascidos.”
Há sempre uma ou duas entregas por ano. Desde 2019, já foram entregues cerca de três mil peças. Na maternidade, cada criança que nasce recebe uma camisola, umas calças, um casaco e um gorro. Para o IPO vão apenas os bonecos. “O que nos foi dito, e que vemos nas fotografias, é que quando chegam os bonecos, as crianças ficam com uma alegria tremenda. É uma forma de os fazer sorrir, por isso mesmo é que o nome é Sorrisos em Letras”, continua Sílvia Brota.
As cerca de 50 voluntárias, entre as quais uma menina de 12 anos (há também um rapaz), juntam-se um dia por semana para confecionar bonecos e vestuário. Sílvia relata um momento inesquecível: “No ano passado, recebemos o telefonema de uma mãe, cuja filha, já de 15 anos e que havia tido um problema oncológico, disse que queria conhecer as senhoras que ofereciam os bonecos. Marcámos um dia com as senhoras de todas as freguesias para a receber. Preparámos um lanchinho e houve algumas pessoas que fizeram bonecos de propósito para ela. E a menina veio cá com a família, mas não estava à espera de ver tanta gente e não conseguiu entrar na biblioteca. Tiveram de estar de volta dela, falámos com as senhoras para que não se fizesse uma grande festa, porque ela ainda pouco cabelo tinha, e foi aos poucos que ela conseguiu entrar na sala, e fizemos ali um convívio. Ela deixou-nos um quadro que tinha feito e que está aqui na biblioteca. Foi muito emotivo.”
Atualmente, cerca de 50 pessoas trabalham no projeto, o que faz com que, apesar do apoio da autarquia e das juntas de freguesia, haja pouco material para tanta mão-de-obra, pois as linhas e as lãs são caras. Para quem quiser ajudar, “as linhas que utilizamos são de algodão para crochê n.º 4 e a lã é sempre um pouco mais grossa”, informa Sílvia Brota.
E porque, nesta Road Trip Literária, os livros e as bibliotecas são o mote, mas o mais importante são sempre as pessoas, deixo um pedido: Quem puder, envie linhas ou lãs para a Biblioteca Municipal Alexandre O'Neill, Estrada Nacional 3, 15, 2250-028 Constância. Mesmo que seja pouco, ajudará. Obrigado.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990