Língua de mulher
A liberdade de uma mulher pode ser cortante como uma faca que rasga a toalha imaculada da mesa bem posta, com os talheres polidos e os pratos a brilhar, a mesa que serve de montra para bons costumes.
É noite, mas a cidade está acesa. As lâmpadas nos candeeiros cintilam, os semáforos reluzem, as luzes de Natal ardem vibrantes num clarão, redundantes, sob a lua cheia, opulenta, que brilha também. A cidade está acesa, como uma fogueira gigante… Esta noite vai arder.
O ecrã do telemóvel acende-se debaixo do tecido do meu sobretudo de riscas brancas e pretas, suficientemente opaco para cobrir o corpo do frio, suficientemente translúcido para deixar antever os contornos e as sombras — as acendalhas da imaginação.
Cheira a lareira junto à janela de um prédio, com luz quente, amarela, cheira a lenha a crepitar, é o inverno, é um inferno, os dias são curtos e a noites são longas. Cheira a fogueira, e a vinho quente a queimar a língua, e cheira ao fumo que sopra arrogante pela chaminé, para que todos saibam que lá dentro está quente, quente por dentro, com o vapor a embaciar o vidro das janelas antigas. A maioria das casas da cidade são antigas, têm mau isolamento, e quando o isolamento é mau a temperatura não se mantém, penso, desdenhando da chaminé pela qual queria escorregar, cobiçando a janela ao longe.
Deslizo as mãos pelos bolsos, sinto o telemóvel na ponta dos dedos frios. Deslizo a língua pelos lábios, guardo-a na boca para não arrefecer. O semáforo avisa o perigo, tinto, mas arrisco o pé na passadeira, a transgredir as regras da urbe, arrisco a perna inteira à mostra, arrisco collants de vidro, mesmo no frio gélido. Arrisco a perna de vidro, transparente, fácil de rasgar. Esta noite vai rasgar.
Cheira a pneu quente contra a estrada, cheira a borracha, alguém travou a fundo, e dou um salto, veloz, sem rédeas, zebra. O condutor acende os máximos, faz sinais de luzes, encadeia-me, retrai um vitupério ou um galanteio por detrás do vidro, mas não abre a janela, está demasiado frio para piropos, demasiado frio para profanações.
Um homem de gabardine, do outro lado da passadeira, acompanha-me com o olhar, com o rosto escondido debaixo da gola, debaixo da luz do semáforo que lhe pinta a silhueta, tingida de encarnado, como um demónio de pele escarlate. Cruza-se com os meus olhos embaciados, desliza o olhar pela minha perna destapada, com luxúria e com desdém: uma faca de dois gumes, um olhar de dois gumes. Contorce o rosto vermelho, ferido pela visão do vidro, incomodado pelas farpas de vidro que ardem na retina, que fazem comichão, que riscam a superfície da consciência onde são dadas as permissões para desejar.
Cubro a perna com o casaco, isolo-me, para manter a temperatura interior — li de passagem que investigadores da Universidade do Utah descobriram que a temperatura interna no corpo feminino pode ser superior à do homem mas a temperatura das mãos das mulheres é inferior à dos homens. Calor e género… As coisas que se descobrem quando se está rodeado pelo deserto simultaneamente escaldante e gelado.
Caminho entre a minha imagem espelhada nas montras, e imagino o que refletiam as vitrinas se tivessem sensores térmicos: os meus pés a azul, as coxas a amarelo, o ventre rosa… E a língua vermelha, incendiária, ainda a arder com as palavras em brasa que te disse, que romperam como um clarão brilhante de uma tocha, com a acutilância fria do gelo. O gelo que queima tanto quanto o fogo. Porque uma língua sem rédeas, espontânea, solta, sobretudo na boca de uma mulher, é temível como uma varinha que pode tanto curar quanto amaldiçoar. A língua de uma mulher queima. A franqueza queima. Esta noite queimou. A liberdade e a sua temperatura.
Caminho sozinha, escolho seguir por um beco mal iluminado, uma rua escura, um traço a carvão entre o mapa estridente da cidade. Um casal gira os pescoços à minha passagem, desviam-se, reparam com apreensão na minha escolha, “Pode ser perigoso”, assinalam com a nuca. “Sozinha, pode ser perigoso…”, comentam… “Pode ser perigosa… uma mulher sozinha só pode ser perigosa.”
Oiço os meus saltos de agulha, sonoros, indiscretos, a romper o ar, a fazer eco na calçada, eco nas paredes… “Pode ser perigoso. Uma mulher quer-se discreta.” Sinto o cheiro a churrasco nas traseiras de um restaurante com as mesas postas, sinto o aroma da carne que gira a pingar sangue nas brasas, sinto o metropolitano a estremecer debaixo do chão, como uma língua a furar a terra, sinto um formigueiro na planta dos pés. Sinto os pensamentos dormentes, as orelhas dormentes, como se os contornos do meu corpo se diluíssem na noite, como se o que se diz sobre mim me pudesse apagar as bordas: As fronteiras entre quem sou e o que me fazes sentir.
Sinto o telemóvel a vibrar inquieto, a barafustar em silêncio, a estremecer vitupérios que ficarão abafados atrás do vidro do ecrã, a praguejar sentenças. Sinto no bolso do casaco o peso das palavras que desdenham da liberdade, porque a confundem com infração, que leem na independência desrespeito, na autonomia desobediência, na emancipação uma ameaça.
Pressinto a vibração das vozes a ditar vereditos, a cuspir sentenças proferidas à distância, digitadas sob anonimato. O Tribunal do Santo Ofício na caixa de comentários da Internet, a Inquisição leviana que se esconde por trás dos julgamentos pudicos martelados com a certeza moral dos Imaculados que se escondem na carcaça cobarde da distância, da luz fria dos ecrãs, e que ainda se ofendem com a liberdade das mulheres.
Porque a liberdade de uma mulher pode ser cortante como uma faca que rasga a toalha imaculada da mesa bem posta, com os talheres polidos e os pratos a brilhar, a mesa que serve de montra para os bons costumes, mesmo que se saiba que debaixo da mesa, as pernas estejam todas num formigueiro, e se calquem dedos, e se chutem pernas, e se enfiem pontas de sapatos debaixo do tecido das calças das pernas alheias, e as pontas dos sapatos subam transgressoras pela perna até à coxa, até ao centro quente do corpo. Desde que à superfície da mesa, a toalha esteja imaculada, e se sirva água límpida, e as mãos se juntem para uma oração, enquanto por debaixo da mesa os pés se movem profanos.
Porque uma boca quente de mulher, sobretudo se proferir palavras que ferem dogmas, ainda é ameaçadora como uma feiticeira com poemas na ponta dos dentes, com feitiços na ponta da língua… A língua que lambe a ferida e faz arder a pele daqueles que se ferem pelas palavras, reduzindo a cinzas o espaço tão fértil entre as ideias e a liberdade. Que temem levantar a toalha da mesa, para que não se veja o esqueleto das pernas de vidro.
Que uma mulher quer-se líquida, maleável, aquosa.
Desaguo na avenida cheia de luzes. Cheira a vapor da grelha do metropolitano, cheira ao calor azedo de odores que emergem da calçada, como as histórias de bruxas que ainda contamos e repisamos.
Relembro-me de O Martelo das Feiticeiras, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger. Foi o primeiro manual oficial da Inquisição para a caça às bruxas: desprezava o conhecimento das mulheres “sábias” que deixavam de ser membros fundamentais da sociedade para serem entendidas como seguidoras de Satanás, acusadas de adorar o diabo. Segundo o manual, a mulher seria ‘sexualmente insaciável’ e, por isso, mais frágil diante do Mal. O livro levou à tortura e à morte de mais de 100 mil mulheres. As bruxas eram queimadas na fogueira. Como castigo por serem livres. Sobretudo de pensamento.
Cavalgo no meu pensamento. Endireito o torço. Ergo o pescoço como um equídeo, pronta a galopar a noite acesa, bato os saltos na calçada, sonora, indiscreta, sinto o meu peso mais perto do chão, mais perto do centro das Terra que arde — a morada do inferno que os googlemaps não assinalam, por pudor ou cobardia.
O céu ilumina-se no alto de uma colina da cidade, diante da lua, que ainda assim, sabe manter-se acesa diante das trevas. Há foguetes que parecem archotes, há varandas lampejantes que lembram cúpulas de igrejas, e há luzes de feiras que parecem fogueiras.
A minha boca acende-se, perigosa, sem que eu a queira apagar. Porque a temperatura de uma mulher ainda fere. Ainda fere a liberdade de uma mulher. Ainda se ateiam fogueiras. Ainda se queimam bruxas. Esta noite vai arder.