Faz mais devagar!

Quando deixamos de beijar de língua, morremos, certo? A rotina, o cansaço, a dureza dos dias, está a obrigar-nos a gerir as nossas vidas a 200km/h.

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"E o pai e a mãe, perdidos, sem se encontrarem para namorar" Leah Newhouse/pexels
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Ouvimos com frequência que parar é morrer, a vida instiga, provoca jovens e menos jovens, a agir, a ser proativos, a atirar-se aos leões. "Vai de cabeça, vai com tudo, não olhes para trás, mesmo que te estateles." Os locais de trabalho estão cada vez menos dados a grandes amizades. Distribuem-se prémios de mérito e de produtividade, mesmo que, como ser humano, não valha nada. A competição e a inveja tornam o ambiente bafiento e essa guerra é ensinada ainda nos bancos da escola.

E só nos resta respirar ar puro quando chegamos a casa. À nossa espera, a mãe, o pai, o marido ou a mulher, o gato ou o cão. Quando era pequena, no regresso a casa, ia a correr dar beijos aos gatos, debaixo da repreensão do meu pai: "Oh Liliana! Pára com isso, ainda há pouco o Tareco estava a lamber as partes íntimas." E eu queria lá saber, era gato, era cachorro, eu não hesitava.

Mas deixemos os animais e foquemo-nos nos humanos. O beijo vai-se perdendo com o tempo? Falo do beijo apaixonado, de língua, molhado q.b., que excita, que arrepia… Passamos desse ósculo para um beijo seco, vazio de alma, um selinho, um chocho. E depois queremos que a cama pegue fogo, assim de repente para o coito. Margarida está casada há 15 anos com João, já não se beijam demoradamente. “Estou com pressa”, disse ao João quando ele a apertava por demasiado tempo. Por outro lado, Margarida quer que João demore mais tempo quando está dentro dela: “Faz mais devagar.” Nesse momento, regressam os linguados, um pouco atabalhoados, fruto de semanas sem treino.

Quando deixamos de beijar de língua, morremos, certo? A rotina, o cansaço, a dureza dos dias, está a obrigar-nos a gerir as nossas vidas a 200km/h. E vai dar asneira como já se percebe pelos inúmeros estudos que indicam que a saúde mental está a tornar os comprimidos ansiolíticos companheiros de cama de muitos portugueses. O casal outrora apaixonado, com a vontade de constituir família, olha para os rebentos e lamenta ser mais o tempo passado a discutir do que a desfrutar dos momentos de crescimento. "Despacha-te! Estamos atrasados! Vai lavar os dentes! Não batas no teu irmão! Não faças isso que vais cair!" E depois o ballet, o futebol, as aulas de piano, as explicações, as primeiras saídas noturnas e o coração apertado. E o pai e a mãe, perdidos, sem se encontrarem para namorar, para fazerem mais devagar, para se olharem com tempo. "Oh mãe esqueceste-te da reunião na escola? Pai, a comida está fria!"

Pronto, esta sexta-feira, ficam com os avós, o pai e a mãe vão passar o fim de semana fora. Olham para a conta bancária e o mais novo precisa de botas novas e a mais velha de ir colocar aparelho nos dentes. Fica para outra oportunidade. Nem a lingerie dela, nem o corte de cabelo dele no barbeiro mais moderno, conseguem vencer o cansaço. Caem na cama e não fazem nada. Nem depressa, nem devagar. Foi mais um dia e a vida a passar sem ser verdadeiramente vivida ou sentida.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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