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A violenta língua portuguesa
Os hábitos linguísticos espelham a realidade social, revelando como a violência, o medo e a desigualdade moldam a forma de nos comunicarmos.
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
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A realidade social modela a língua. Estarrecido, ouço na rádio sobre uma pessoa ter sido jogada da ponte por um policial militar e um homem, que roubou sabão em um supermercado, ter levado onze tiros nas costas. Tudo acontece quase ao mesmo tempo e o condutor do aplicativo me questiona sem que eu lhe pergunte: “Mas quem se importa quando um policial morre…? Aí acham normal, né?”. Respiro. Ao passo que convivemos com a violência nas mais variadas esferas, começamos a normalizá-la e essa realidade violenta modifica a nossa relação com a linguagem. A violência modifica a língua portuguesa.
O fenômeno, sejamos honestos, não é novo. Basta analisarmos o significado que ganharam na língua palavras como “judiar”, “denegrir” e os muitos ditos e expressões populares que inferiorizam pretos, mulheres e outros coletivos sociais. Ao longo da história, a língua portuguesa foi utilizada para conquistar, matar, escravizar, colonizar, humilhar, subornar e outras ações violentas. E ela foi se contaminando com essa violência.
Em Portugal, a xenofobia, a herança colonialista, a masculinidade tóxica, entre outros problemas históricos e sociais, ainda deixam seus rastros no cotidiano da língua portuguesa. Penso agora nas palavras de um brasileiro para quem o “desculpa lá” tão português lhe soa como um modo velado de conter uma atitude agressiva. Sim, temos sempre de pensar que somos interpretados por outros…
Mas queria, agora, focar no Brasil, onde, de uns anos para cá, temos assistido à escalada da violência urbana. Ela vai se normalizando na cultura, nos discursos e nas práticas institucionais. Curiosamente, isso ocorre ao passo que aumentam também os espaços de discussão e ação a respeito da justiça social. Viver, de fato, é complexo, mas a esperança é semente persistente.
A morte de um policial por um bandido é de lamentar. Porém, como cidadão, não posso me conformar quando a lei é mal construída ou mal exercida. Viver no Brasil é o exercício de alerteza: “É preciso estar atento e forte”. Por esse mesmo motivo, não posso naturalizar que se faça justiça com as próprias mãos, não posso considerar normal que uma instituição pública se comporte com práticas próprias dos bandidos.
Mas já em 1962, Clarice Lispector ficou com um sentimento um tanto próximo ao meu com a morte do “Mineirinho” e o registrou magnificamente em um texto com o mesmo nome. As realidades nunca são tão novas assim.
Mas que dizer das pequenas manifestações violentas que chegaram à nossa língua materna? Estou agora tomando um café e, na mesa ao lado, uma pessoa faz um pedido: “Me traz uma média e um pão na chapa!”, assim sintético e seco, sequer olha para o atendente que, diga-se de passagem, também não lhe dirige o olhar. Onde foi parar a polidez? O que comunica sobre um coletivo a agressividade de um pedido sem traços de cortesia?
Havia outras possibilidades como “Bom dia, como está? Por favor, pode me trazer uma média e um pão na chapa?”. O discurso cotidiano incorpora, aos poucos, uma atitude violenta em relação ao outro. E eu lido, aqui em São Paulo, constantemente, com essa violência encoberta pelos discursos. Quando a língua não se curva ao sorriso e ao respeito, ela morre um pouco.
Aproximo-me da fila do caixa para pagar o meu café. À minha frente, uma menina olha para a mãe e ordena: “Mãe, leva um chocolate! Eu quero”. A mãe — será mesmo a mãe? Tomara que não! — responde: “Você tá louca, menina? Tenho dinheiro pra isso não!”. A menina — uns 12 anos, talvez… — não se faz de rogada: “Tá vendo? Por isso é que eu odeio você!”, e se fecha numa expressão mal-educada de birra.
Essa perda da polidez que abre margem para mais uma — são tantas! — manifestação da violência tem a sua história e diversas causas. Em algum momento, no Brasil, substituímos algumas das palavras de cortesia pelo tom da voz. Conforme se falasse, dizer “Pega um café para mim?” era quase como pedir por favor. Mas, o tom cortês se cansou e começou a sumir. Ficou a ausência gritando o silêncio das ordens.
Aliás, considerando que, durante séculos, ordenar foi visto por muitos como sinal de ser bem sucedido, consigo entender que se prefira mandar a pedir. Felizmente, há muitas pessoas que não agem assim. Pessoas que se incomodam tanto quanto eu — ou mais! — com a grosseira que vai conquistando sua fatia na expressão linguística.
Um amigo meu assinala também um fato curioso. “Mas se eu começar a ser muito simpático com quem eu não conheço, vão começar a me pedir dinheiro”. O medo é sempre aliado da violência. O medo de ser explorado, passado para trás, de algum modo violentado… O medo silencia a polidez. O medo prolifera na injustiça, na desigualdade, no egoísmo. E quantos modos temos em português de ameaçar, humilhar, violentar o outro? O medo é fértil na história dos países que falam português, por isso, ele está tão presente na nossa linguagem.
Dos cerca de 290 milhões de falantes de português, 75% são brasileiros. Somos uma força que define o futuro da língua no mundo. As causas do comportamento violento, inclusive o comportamento com a linguagem, são muitas. Não podemos naturalizá-lo seja no racismo, seja no machismo, na falta de alteridade e empatia ou em qualquer de suas manifestações. Nem nas ações, nem na linguagem. Nem nas heranças que nos chegam do passado, nem nas realidades que se vão construindo no presente.