Preciso de um Concelho

Tenho também consciência de que se trata de uma dúvida de primeiríssimo mundo, um questionamento burguês quase ofensivo face aos inúmeros e reais problemas que existem.

Foto
"O mar tem feito muito por mim" Nuno Ferreira Santos
Ouça este artigo
00:00
06:53

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Vivo neste momento na Linha de Cascais, mas sou de Lisboa.

É em Lisboa que tenho a minha família e os meus amigos. Em Lisboa tenho também as minhas livrarias, os meus jardins, a minha faculdade, os meus cinemas, as minhas esplanadas, o meu dentista, e até as árvores que plantei. Os meus monumentos pessoais.

Aqui tenho o mar. Sempre me senti capaz de abdicar de tudo pelo mar. E foi o que fiz.

O mar tem feito muito por mim. Devo-lhe horas de mergulhos e desabafos. De passeios grandes e silenciosos, dos que permitem fazer perguntas como: “Mas que coisas é que constituem a nossa verdadeira história?”

Infelizmente, tenho vindo a constatar que o mar não toma conta das minhas filhas. Não dá aquela perninha para ir buscá-las à escola quando estou presa no trânsito. Também nunca apareceu à noite com um anti-histamínico ou uma canja. Não se tem mostrado solícito nesse aspecto.

Há momentos da vida em que temos um assunto que é o assunto principal. Um assunto muito individual, que toma dimensões enormes cá dentro, e que estabelece todos os outros como coisas pequenas e secundárias. Aconteceu-me na gravidez. Tudo era acessório, se comparado com aquilo. Acontece também quando se está apaixonado. Em ambas as situações, sentimos que há sinais constantes, como se o universo tivesse passado a comunicar exclusivamente connosco. Procuramos conselhos, ouvimos os outros com demasiada atenção. Todos nos parecem profetas ou tolos, consoante se aquilo que dizem nos reconforta ou nos desalenta.

Mas este estado de obsessão não é exclusivo dos grandes eventos; acontece também nas neuroses do dia-a-dia. Nos dilemas que cá dentro são gigantes e que para os outros são apenas divertidos ou vagamente incompreensíveis. Ouvem-nos por delicadeza, mas não estão mesmo a perceber qual é, afinal, o problema. E, por um lado, ainda bem que é assim. É bom chegar com o meu grande assunto, o meu cão de açaime a espumar-se e a derrubar tudo, e receber as festinhas condescendentes dos outros. Acalma-me muito a relativização dos meus melodramas.

Neste momento, de há umas semanas para cá, o meu grande assunto tem sido a escolha do sítio onde devo viver.

Reequaciono a minha morada constantemente. Este é o dilema que me tira o sono e enche as páginas dos meus cadernos e das minhas conversas no WhatsApp. Estou embrulhada.

Será assim tão importante um código postal? Eu deveria saber que não. Afinal, nunca decorei um. Há sempre um caixote que ainda não se desfez. Ou que já não vale a pena ser desfeito.

Mas, talvez precisamente por isso, sinta que chegou o momento em que preciso de uma casa. Mesmo que eu não saiba ainda o que isso seja. Talvez seja uma fechadura. Um canalizador que se trata pelo nome. Proteção. Um vizinho a quem acenar. Um parapeito no qual me debruçar. Talvez seja a chave extra deixada com alguém em quem confio. Uma renda. A descoberta sossegada do meu corpo. Uma varanda onde se fuma depois das festas. O sítio onde faço uma tour pelas estantes. Talvez um jardim. Um chuveiro meigo. Uma morada para sonhar com outros sítios. Migalhas na bancada da cozinha. Um local que ninguém invade. Um intercomunicador pendurado a baloiçar pela ânsia de uma chegada. Um destino no GPS. Há um verso do T.S. Eliot que diz que a casa é o lugar de onde se parte.

Tirando a angústia dos valores imobiliários da equação, olhando apenas para a geografia, não consigo decidir o que fazer. Mais do que um conselho, eu preciso de um Concelho. Lisboa ou Cascais? Esta é a pergunta que repito infinitas vezes durante o dia.

Não são todos os que me entendem. Amigos brasileiros, principalmente, elevam as sobrancelhas e olham-me com espanto quando percebem que estamos a falar de uma distância de 20 e poucos minutos.

Tenho também consciência de que se trata de uma dúvida de primeiríssimo mundo, um questionamento burguês quase ofensivo face aos inúmeros e reais problemas que existem. Mas a verdade é que é o que tenho na cabeça. E preciso de tomar uma decisão.

Se estou em Lisboa, ouço os relatos dos que lá vivem com interesse quase antropológico, como se me pudessem revelar algo de novo sobre a minha cidade natal. Observo as pessoas a passar. Parecem felizes?

Encontro conhecidos na rua, pergunto como estão e desato a entrevistá-los, faço perguntas intrusivas. Subitamente, o que mais quero saber é a média de tempo que demoram a estacionar o carro e se o barulho dos aviões está mesmo muito pior. Sou uma colecionadora de estatísticas existenciais.

Se estou no Estoril, faço o mesmo. Ouço as narrativas, os seus louvores ao paredão, os motivos pelos quais jamais seriam capazes de viver em Lisboa.

Muitos felicitam-me pela escolha solar. “Fazes bem! Lisboa está hostil.” Queixam-se do lixo, dos preços, da fila interminável no Galeto, do trânsito, das lojas que fecharam. Lisboa está feia, está escura, está má.

Antes de eu vir para a Linha todos diziam: “Quando fores para a Linha, já não vais querer outra coisa.” A Linha era esse espaço místico, um feitiço do qual ninguém escapa, a terra sem retorno, o limbo dourado. Uma espécie ilha de Ogyvia, onde Calypso manteve Ulisses preso, e onde ele poderia ter vivido para sempre, longe das dores do mundo.

Quando o assunto era viver na Linha, as pessoas davam-no por encerrado, e eu confesso que gostei disso. De poiso em poiso sem jamais repousar, ansiava por essa escolha definitiva. Esperava tornar-me uma dessas pessoas bronzeadas que encontramos em almoços, e de juntar a minha voz à delas: “Ah, quem vai para a Linha já não volta!” “Em Lisboa é que já não me apanham!”

Pois não foi isso que aconteceu. Encantei-me, claro, com o paredão. Com o azul hipnótico em quase todos os trajectos. Mas mentiria se dissesse que não me faltam as pessoas. Faltam-me as pessoas.

Este argumento é em si frágil. De que pessoas falo eu? Porque a verdade é que a rotina de escolas, consultas e reuniões não envolve assim tantas pessoas. Estarei a mitificar o conceito “pessoas”? Na prática, muitas das minhas amigas vivem em Carnaxide, em Santarém, no Algarve, e até na Suíça.

Então que pessoas são estas que me faltam e que no meu imaginário estão em Lisboa? Serão as pessoas a quem aceno?

A decisão ainda não chegou. Neste momento estou nesta encruzilhada, neste ponto quase confortável de hesitação. Há segurança na indecisão, porque enquanto não escolho, nada se perde. Mas preciso de escolher, e escrevo este texto em forma de pedido. Um pedido de conselhos, mas, sobretudo, de um Concelho.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Comentar