O Coração Ainda Bate. A casa e o acaso
Uma linha quase invisível separa-nos da sorte grande e do maior dos infortúnios. Nunca são eles e nós.
Durante anos trabalhei na avenida que me parecia ser a mais triste da cidade. Era larga e ventosa e tinha poucos ocupantes, nenhumas casas. Tinha mais ocupantes do que casas. Gente que se ocupava, mas sem ofício. Era um sítio quase sem nome, um nome que não queríamos pronunciar.
A avenida era da cor do cimento, mesmo sem prédios, e muitos dos seus moradores também tinham um ar baço, quase cinzento. Andavam muito depressa. Atravessavam a avenida sem ver os carros. Procuravam recantos exíguos onde pudessem dar um chuto de prazer e desgraça.
A avenida mais triste da cidade, a que era ventosa, era a descida do corrimão gigante chamado Casal Ventoso, um concentrado de miséria sem piedade.
O autocarro que passava ali seguia apinhado de gente muito esguia, consumida pela droga. Custa dizer droga porque nunca fica bem em nenhum recanto da prosa. Eu já tinha visto muita gente a consumir-se nesse mundo sem saída e quando voltei a Lisboa deparei-me com esse postal rasgado que já não se aproveita e não queremos enviar a ninguém.
Um longo caminho feito pelo autocarro mostrava-me a agitação de um supermercado a céu aberto onde paravam carros grandes e gente apeada. Ricos e pobres. Filhos que perderam o nome e nomes que já não pertenciam àqueles rostos. Era um turbilhão que eu via da janela do autocarro. Depois, quando descia na paragem, já os via deitados com um esgar de prazer dormente. A defesa de quem ali trabalhava era tentar não ver, mas víamos. Todas as horas eram escolhidas. Uma vez naquele mundo perde-se a ideia do que é um bom momento para dar seguimento à vontade cega. Todos os minutos são tragicamente válidos.
Talvez fosse meio-dia de um fim-de-semana que calhou no Natal. Havia menos carros na avenida e menos autocarros com gente que sonhava com a Meia Laranja ou meio limão para a dose habitual. O torpor. Eu estava sozinha, depois de mais uma emissão longa de rádio, à espera desse 701? Ou 742? Não me lembro agora. O autocarro não vinha e um homem começou a cambalear pela avenida, ignorando o tráfego vindo do tráfico. Parecia aproximar-se de mim, ali desolada, na avenida mais triste da cidade. Imaginei um potro que tinha começado a andar, mas era o contrário, ele já não se lembrava bem de quem era, que passos soubera dar. Ninguém, só eu e ele na minha direção. Quando se aproximou mais, trazia no braço uma seringa pendurada. Passaram quase 30 anos e ainda tenho essa imagem nítida. Ele seguiu para um desses cantos frios, exíguos, e eu subi para o autocarro.
Natal ou outro dia qualquer. Nenhum dia é especialmente bom ou mau para ocupar a desgraça. Não se contam os dias quando todos os dias são iguais. Quando se acorda com uma pulsão que há muito já nos anulou a identidade.
Lembrei-me disto, outra vez, não pela proximidade do Natal, mas porque voltei a passar naquela avenida. Há muito que tem prédios e moradores, mas agora tem também gente a dormir ao relento, entre cartões e guarda-chuvas que fazem uma coreografia triste. Será que nunca conseguimos dar um final feliz aos sítios tristes? Só os mascaramos temporariamente, mas eles voltam à sua essência, uma quase fatalidade que não se traduz sequer por palavras?
Nunca achei que fossem eles de um lado e eu do outro. Acho que passamos facilmente a estar de um lado, que nunca imaginámos, quando a vida soma desastres vários, subtrai amigos, calcula mal os nossos sonhos. Não são eles e nós. São muitas coisas a empurrarem-nos para o abismo ou às vezes para coisa nenhuma.
A avenida mais triste da cidade tem homens e mulheres a dormir ao relento que já tiveram casa como nós. A casa e o acaso: uma linha quase invisível separa-nos da sorte grande e do maior dos infortúnios. Nunca são eles e nós.
Passamos todos na mesma avenida.
O coração ainda bate.