Duas Julianas

Depois do massacre, olho lá no chão a mosca desfigurada, com uma asinha ainda tremendo. Pego uma bota e esmago a agonia. Ao olhar aquele triste quadro sem vida, sinto uma leve repulsa, uma breve pena.

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Escrevo de um quarto de hotel, em Lisboa. Essa informação não é gratuita e o leitor, acredite, precisará dela. Também estarei um pouco exposta neste texto sobre duas Julianas, uma mosca e a cidade.

Frequento Lisboa há exatos três anos com vontade e persistência mensais Desta vez, a convite de um belo hotel, fui para Cascais, onde me hospedei por alguns bons dias enquanto escrevo um livro novo. Numa temporária vida de rainha, mudei meu escritório para o terraço que vem com o Atlântico.

Senhora Nara, como passou a noite? Como vai querer seus ovos? Vai, antes de tudo, querer ovos? Gostaríamos de lhe oferecer um jantar. Precisa de alguma coisa? O que podemos fazer pela senhora Nara? E eu me perguntava: quanto será que vou conseguir escrever sendo tão bem tratada? Será que toda essa harmonia vai resultar num texto? Ou vou imitar as pessoas ao redor e fechar os olhos sob o débil sol de novembro, enquanto sorrio sem abrir a boca, plena, cabeça para trás? Se eu fechar os olhos como elas, vou precisar fechar o computador e o caderno.

Há uma parte do livro que se dispõe a analisar a dificuldade, mas também a glória que é uma escritora poder viver da escrita e seus desdobramentos. Pensando nisso, volto, abruptamente, para a realidade e recomeço a escrever. Parto da ideia de que, quando viajamos e ficamos em casa dos outros, é prudente que não tratemos essa mesma casa que nos hospeda como nossa e estejamos prontas para bancar uma fuga caso encontremos dificuldades intransponíveis.

Orgulhosa de poder custear minha dignidade, não incomodar os amigos e já longe da vida de rainha de Cascais, faço o check-in num discreto hotel em Lisboa, na Rua do Comércio. O quarto é pequeno, decente, tem seu charme e uma vista bonita. Olho em volta e penso que, afinal, patrocinar a própria fuga quando estamos prestes a cair da borda passa mesmo a ser inesquecível.

Enquanto vou apalpando o novo território, uma mosca atrapalha meu pensamento enrolado. Acaba por me fazer largar o meu emaranhado de emoções para acompanhá-la em seu voo, como eu, desnorteado.

Um pequeno problema: já era noite, entrei tardíssimo no hotel. A mosca passou a ser uma inconveniência, porque o meu plano era dormir sozinha. Abri a janela. O ar confuso de Lisboa, que não se define entre frio ou quente nem mesmo em novembro, preencheu o quarto.

Nem todos os quartos de hotel são impessoais. Este, além de mim num estado tumultuado, tem uma mosca brilhantemente preta que não vai embora. Da cama acompanho seu movimento redondo e bêbado. Parece querer achar uma saída. Penso em dizer a ela que eu também busco uma saída. Mostro a ela a janela e digo que vá, mas que não pense que vou acompanhá-la. Não é pra tanto.

Mosquinha cega parece não enxergar que tem saída. Prefere ficar num espaço aéreo onde nem é bem-vinda, do que pegar aquela estrada ali fora. Voa, chego a falar. Ela não ouve. Paciência. Uma hora vai ter que matar ou morrer. Se fossem duas moscas, eu daria a cada uma delas o nome de Juliana, assim mesmo, repetido. Poderiam velar meu sono intranquilo como as Julianas humanas que poucas horas antes da mosca, também me distraíam, mas com mais sofisticação.

Penso nas ideias trocadas com as Julianas como a da contradição pachorrenta que é alguém sofrer de coração partido, tendo partido também um coração. Vou escrever sobre isso, me animo. Mas hoje já ninguém fala sobre as mortalidades, suas vulgaridades e fracassos. No Instagram, todo mundo está feliz.

Acho graça ao lembrar de uma amiga que tinha um projeto de se fotografar quando estava na merda, quando estava gripada, fazendo pequenos filmes onde ela tomava comprimido, tirava a temperatura e assoava o nariz. Chegou a postar alguma coisa. Ninguém nunca aderiu. Ninguém quer ver um corpo morto ou ferido. A essa altura, o bom vinho já acalmou minha carne e caio no sono. Impossibilitada de expulsar a mosca, me rendo e dormimos juntas.

Acordo com alguém brigando, em português. Ao menos não é dentro do meu quarto. Com a cabeça pesada, olhos vermelhos e inchados, penso que preciso me levantar, tomar café, ver se faz sol lá na rua. Acordei, mais uma vez, em Lisboa. Enquanto eu abria a cortina, notei uma mancha preta minúscula, insuspeita, melancólica no cantinho do rodapé. Não havia mais dúvida: a mosca precisa morrer. A essa altura, me sobe pelos braços uma imensa raiva quente daquele bicho tonto que teve tudo para voar e insistiu em ficar.

Surpreendida com a estupidez da mosca, decido que ela já não tem direito de ir embora e voar livre por aí, e deve pagar pela sua estupidez: ela merece morrer. Tranco a janela impedindo sua liberdade. Meus olhos passam, analíticos e apertados, pelo quarto procurando a arma. Um livro. Vai morrer massacrada por palavras. Morre, desgraçada. Ela escapa e num surto de inteligência, pousa na tela preta da TV. Não é só a camuflagem que me dificulta. Não posso bater com um livro na TV. Não posso arcar com a TV quebrada de um quarto de hotel.

Ela continua lá, descansando e imaginando, nem tão inteligente assim, que está escondida de mim no preto profundo da tela desligada. Pego da mala uma blusa leve. Não vou conseguir matá-la com a blusa, mas o plano é que ela pouse em outro canto para que eu recupere a estratégia letal do livro. Provocada pela surpresa de ser encontrada, ela voa da TV para a parede. Previsível, estúpida e disponível.

Depois do massacre, olho lá no chão a mosca desfigurada, com uma asinha ainda tremendo. Pego uma bota e esmago a agonia até sair de lá uma gosma branca. Ao olhar aquele triste quadro sem vida, sinto uma leve repulsa, uma breve pena. Alguém tinha que morrer, e não seria eu. Guardo a arma do crime: nostalgias canibais e que traz, agora, uma pequena mancha de sangue na contracapa. Desço o elevador, atravesso a rua, entro no número 21 da Rua do Comércio. Um café às moscas. Saboreio um pão com manteiga, tomo uma meia de leite e respondo às mensagens das Julianas.

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