Destralhar
Talvez arrumar as coisas à nossa volta nos ajude a lidar com a nossa desarrumação interior. Talvez precisemos de nos livrar do que nos impede de seguir em frente.
Escrevo esta crónica rodeado de caos. Decidi destralhar a casa e agora tenho-a em pantanas. Há caixas repletas de livros no escritório, na sala e no hall de entrada, à espera que as entregue numa livraria solidária. Há sacos com roupa espalhados pelo quarto e pela sala e peças atiradas para cima da cómoda e do sofá, até que perceba que destino lhes quero dar. Há revistas amontoadas no chão de várias divisões, livros que quero oferecer a amigos, caixas com tralhas à espera de espaço nos armários, montanhas de papéis a que preciso de deitar os olhos antes de os pôr no lixo. Estou nisto há dias e não vejo fim à vista, porque tenho uma absoluta incapacidade de começar uma tarefa — por mais pequena que seja — e levá-la até ao fim sem interrupções ou distrações.
Na terapia, a psicóloga quis saber porque é que decidi começar agora a destralhar. Expliquei-lhe que me faltam armários para arrumar coisas e acabo sempre por ter a casa mais desarrumada do que gostaria. Pareceu-me uma resposta lógica e razoável, mas não a convenceu por inteiro. Avançou outra hipótese: não estarei a procrastinar na escrita do novo livro porque não está a fluir como desejava? Talvez. Ou talvez me seja difícil escrever rodeado de tanto caos. Pode sempre haver algum outro motivo subliminar que me esteja a escapar.
A verdade é que o raio da psicóloga me deixou a pensar sobre a necessidade de nos desapegarmos das coisas de que realmente já não precisamos. Várias vezes ouvi que para arrumarmos a nossa vida sentimental temos de primeiro arrumar a nossa casa e só agora pensei verdadeiramente nisso. É verdade desde logo num sentido literal: quando convidamos alguém para o nosso espaço não queremos parecer uns adolescentes desarrumados. Mas o significado deste ato de destralhar é mais profundo: talvez arrumar as coisas à nossa volta nos ajude a lidar com a nossa desarrumação interior.
Talvez precisemos de nos livrar das coisas que nos impedem de seguir em frente. E aceitar que há outras que merecem ser mantidas por perto, porque nos enriquecem, mas que não devemos fantasiar e romantizar quando não recebemos nada em troca. Aceitar que se algo não funcionou antes, dificilmente funcionará agora. Que se alguém não nos quis no passado, dificilmente nos quererá no futuro. E que mais importante do que aquilo que sentimos em relação a alguém é como essa pessoa nos faz sentir. Se nos aquece o coração e nos ilumina os dias, é para manter por perto. Se nos enche de insegurança e ansiedade, é para largar quanto antes.
Até ao final do ano, todas estas caixas ficarão arrumadas no seu devido lugar. E então, sim, poderei começar a escrever novos capítulos.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990