A poesia cura, mas, infelizmente, é vendida em livrarias e não nas farmácias

A capoeira, com sua poesia, é a linguagem que abraça locais e a comunidade migrante, pois nos reconecta com a nossa ancestralidade.

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Recentemente, regressei à capoeira para iniciar meu moleque nos encantos desta que é uma das maiores relíquias de nossa ancestralidade africana no Brasil.

Mestre Perninha formou-se com Mestre Camisa, criador do Abadá Capoeira, onde, no início dos anos de 1990, eu frequentava para acompanhar alguns amigos que lá treinavam. Ficava no desativado CIEP do Humaitá, no Rio De Janeiro. Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) eram um projeto educacional de inclusão social de autoria do antropólogo Darcy Ribeiro.

As aulas de capoeira eram à noite. Lembro-me de lampiões de querosene a iluminar os arcos de concreto, do som do dobrão de pedra no arame do berimbau e das cantigas populares que furavam o teto em coro, num quase transe entre meias luas de compassos, bênçãos, negativas e armadas.

O agora Mestrando Perninha — entronizado no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, neste mês —, mudou-se para Lisboa há cinco anos, onde, com sua companheira, a corda marron Minnie, dão aulas de capoeira em sua academia instalada aos pés da Praça do Chile.

Perninha é também compositor dos bons de cantigas de capoeira, toca berimbau como poucos, atabaque, pandeiro, dá aulas para adultos e crianças, que, para além da ginga e das “cocorinhas", ensina aos miúdos quem foi Zumbi Dos Palmares, o que é uma cuia — a caixa sonora do berimbau — ou com quantas cascas de castanha do Pará faz-se um agogô.

Trazer a capoeira para esta Lisboa criola será transformador em pouco tempo, no caminho da aproximação real dos países de língua portuguesa. A capoeira é a linguagem que abraça locais e a comunidade migrante, reconectando essa comunidade com sua ancestralidade.

A poesia na capoeira sublinha a vida, recria em versos elos da psicologia analítica do inconsciente coletivo de Carl Jung. A camada mais profunda da psiquê, constituída por materiais que foram herdados, onde moram os traços funcionais, as imagens virtuais. Como em versos populares: “Meu besouro voou, pega o meu besouro, ê ê ê ah, meu besouro acabou de voar" ou "Quem nunca viu, venha ver, licuri virar dendê, quem nunca viu venha ver, caldeirão sem fundo ferver".

No essencial Capoeira de Besouro, 2010, do mestre da pena fina da música brasileira, Paulo César Pinheiro, canta-se: “Na roda do berimbau, balança que pesa ouro, não é pra pesar metal", trecho de Toque de Amazonas, ou, ainda, em Toque de São Bento Grande de Angola:

“Meu avô já foi escravo
Mas viveu com valentia
Descumpria a ordem dada
Agitava a escravaria
Vergalhão, corrente, tronco
Era quase todo dia
Quanto mais ele apanhava
Menos ele obedecia”.

Ou em Samba De Roda:

“Quando eu morrer
Tudo acaba, tudo finda
Eu cheguei trazendo nada
Vou levar menos ainda".

Escutar o berimbau e a comunidade pode ser a cura da sociedade.

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