Um roteiro de fora para dentro, no Parque Natural da Arrábida
Um mergulho nas serras, a pé ou cavalo, mas não sem antes saborear os vinhos, os licores, os doces e as histórias de quem faz questão de manter a herança cultural endógena de um território autêntico.
Um roteiro que faça justiça ao Parque Natural da Arrábida levaria uma vida a ser construído. Até porque o território abrange 17 mil hectares e parte dos municípios de Palmela, Setúbal e Sesimbra. Contrarie-se a expressão “ter mais olhos que barriga” – ela será necessária para provar a região –, há que delimitar uma área de acção e resistir à tentação de percorrer o território de lés-a-lés, a 100 quilómetros/hora.
A N379, que liga Palmela a Azeitão, é o fio condutor perfeito para explorar uma parte Arrábida, de fora para dentro. Porquê? Porque as características únicas desta geografia estão umbilicalmente ligadas aos produtores locais que se mantêm orgulhosamente genuínos, fiéis às raízes, mas nunca parando de criar.
No centro da Quinta do Anjo, numa visita à Casa Agrícola Horácio Simões testemunha-se tudo isto. Ou melhor, prova-se. As visitas e as provas são lideradas por Teresa Barrigas, que faz questão de dizer que não pertence à família, mas fala com a emoção e o conhecimento de quem vive no coração da casa. Após a morte de Horácio Simões, em 2019, lembra, a família decidiu continuar o legado: trabalhar castas autóctones e nacionais, trabalhar com vinha velha, à moda antiga, cuidar do território, que é de todos, e valorizar o tempo, fundamental na observação da vinha e no trabalho de adega.
Não raras as vezes se ouve que o Moscatel é demasiado doce. Também não são raras as vezes em que é servido com limão e gelo, numa tentativa de lhe adicionar acidez e frescura. Para desconstruir essa ideia de o Moscatel precisar de “bengalas”, Teresa serve diferentes referências da casa, do entrada de gama ao topo Excellent Moscatel Roxo, e, de uma assentada, a sensação é surpreendente. Notas de prova à parte, um leigo na matéria reconhece-lhes elegância, complexidade e equilíbrio, aos quais Teresa junta a explicação.
O avô – como se refere a Horácio Simões – “dizia que se a vinha leva um ano a dar-nos alguma coisa, nós temos de respeitar o tempo que esses frutos levam a transformar-se naquilo que nós queremos. Não os podemos apressar.” A primeira edição limitada de Excellent Moscatel Roxo começou a ser trabalhada muitos anos antes de ser lançada no mercado. Horácio Simões começou a provar, ano após ano, todas as barricas de moscatel roxo, fazia os seus apontamentos e marcava as barricas a giz. Anos mais tarde, identificou as que tinha marcado mais vezes, escolhendo-as para o blend.
O tempo, além do profundo conhecimento e respeito pela matéria-prima, está na base de tudo o que aqui se produz. Depois, ou em simultâneo, vem o arrojo em experimentar sem medo de falhar. Esta é uma região com muita influência de toda a cordilheira da Arrábida, mas também do Atlântico. Pela proximidade ao mar, e aceitando o desafio proposto por um amigo da família, decidiu-se alojar, durante cinco anos, dez barricas de Moscatel Roxo 2010 no histórico barco Évora, hoje usado para eventos, atracado em Setúbal.
Apesar de sair todos os dias, o facto de estar no cais gerava sempre algum movimento, fazendo uma bâtonnage natural ao Moscatel. De forma a partilhar esta experiência, foi lançada uma edição limitada em caixa dupla com o Testemunha, o vinho que tinha ficado na adega, e o Costa a Costa, proveniente das barricas que tinham estado a bordo. Fazer Moscatel é uma arte. E, no fundo, o resultado do que se prova depende do artista.
No regresso à estrada fica a promessa de voltar para uma prova de vinhos e para ver como estão os moscatéis, agora adormecidos em barricas que sempre foram usadas para cognac, rum, bourbon, tequila, gin. Até porque algumas das experiências mais inusitadas da Casa Horácio Simões só se podem provar dentro de portas, já que nunca saem para o mercado.
Serra do Louro: “Conheço-te de ginjeira”
Na Quinta do Anjo não faltam oportunidades para se reconhecer a Arrábida, no prato – com o queijo de Azeitão – e no copo. Próxima paragem: Casa do Arrabidine. Um antigo lagar de azeite de finais do século XVII é, desde 2013, a nova casa de um licor cuja origem se dilui nos meandros de quase 400 anos de história e que ainda hoje vai à Arrábida buscar as bagas silvestres de que é feito, continuando a demorar 7 a 10 anos a ser produzido. Também nesta casa, o tempo é de ouro.
A receita, ou fórmula original, criada por frades arrábidos, chega às mãos de Emídio Fortuna na década de 1950, que regista a marca. Emídio era analista numa adega da região. Em 1958, lança-se na fabricação de licores e refrigerantes. Anos mais tarde, interrompe a produção dos licores, que o filho Duarte e a neta Sofia Fortuna recuperaram em 2012. “Decidimos regressar ao mercado, até para não perder a memória dos nossos produtos”, diz Sofia.
O portefólio inclui o macio e perfumado Bicabagaço, um nome composto para o café com cheirinho, feito a partir de aguardente bagaceira de castas moscatel e fernão pires. E a elegante ginjinha Conheço-te de Ginjeira, sem corantes nem essências, que casa as ginjas da Serra do Louro com a mesma aguardente. Dentro da garrafa não se encontra o fruto, porque, como explica Sofia, já vai sendo escasso e todo ele é necessário para a produção, que passa pela selecção das ginjas, na serra, que depois são colocadas frescas em barril de carvalho amazónia, onde a magia de aromas leva 12 a 18 meses.
A premissa de fazer aproveitamento de matérias-primas não é novidade e mantém-se nas novas criações da casa. É o caso do gin, lançado em edição limitada de 467 garrafas para celebrar os 10 anos da Casa do Arrabidine. Usa a matéria-prima botânica do licor e tem um toque de rosmaninho, laranja-doce e erva-príncipe, parte do perfil aromático da Arrábida, tão presente no código genético deste negócio, pequeno e familiar.
Em Palmela, naquela mesa, com vista para o Parque Natural
Entre provas e visitas às adegas, uma boa refeição é também pretexto para sentar e contemplar o que o palato já deixou antever. Em Palmela, no miradouro junto ao castelo, há um novo restaurante que veio ocupar um espaço já conhecido pela vista que enquadra o castelo, o Sado, a Península de Tróia, o Vale dos Barris e as serras que o circundam. É outra perspectiva do Parque Natural que se contempla na esplanada do Naquela Mesa.
A cozinha é liderada pelo chef Rafael Kazumyan, que usa produtos locais com interpretações originais. “Gosto de respeitar as tradições e acrescentar a minha experiência”, diz o chef arménio que já trabalhou em cozinhas de todo o mundo e decidiu fixar-se em Palmela, onde os pais têm uma produção familiar de vinhos de frutas e aguardentes da região, que dá pelo nome Palmanhac.
Voltando à mesa, Rafael propõe uma carta que está em constante mudança para acompanhar a sazonalidade dos produtos. Defende que as pessoas não procuram tanto um prato particular, antes ser surpreendidas. Como é que isso se faz? Logo na entrada. Por exemplo, o queijo de cabra, da região, com peras cozinhadas com Moscatel de Setúbal tem um modo de confecção sui generis. A pêra é cozinhada em vácuo juntamente com Moscatel e feno, que liberta o seu aroma herbal, fresco e terroso, dando ao conjunto um toque surpreendente. Depois, esse mesmo feno já embebido em Moscatel, poderá servir para, por exemplo, fumar bacalhau.
O peixe é presença obrigatória na carta camaleónica de Rafael, mas também aqui há espaço para a inovação, recorrendo aos produtos e produtores locais. Basta um breve passeio por Palmela para se perceber a quantidade generosa de laranja e limão que nasce qualquer quintal. Pegando nestes citrinos, o chef arménio criou um óleo subtil para contracenar com sarda marinada, servida em fatias.
Em relação à carta de vinhos, contraria-se a tendência de ter muitas adegas com poucas referências. O objectivo, explica o chef, é que se sinta o terroir da região: Quinta do Piloto, Bacalhôa, Horácio Simões e, um pouco mais desviada, A Serenada, de Grândola. Outras propostas encontram-se na carta de bar, desenhada por Jorge Camilo, que promete conquistar mesmo os mais cépticos com cocktails frescos, de baixo teor alcoólico e com os aromas da serra, onde vai colher muita da matéria-prima, como o cedro ou a lúcia-lima.
Ainda no centro de Palmela, continuando na senda de “provar a serra”, é obrigatória a passagem pelo Retiro Azul para abastecer a mochila com pastéis Dom Filipe, do chef pasteleiro Nuno Gil. Foi criado no âmbito de um concurso do município de Setúbal, que procurava um doce que representasse a região, desde que incluísse um dos produtos endógenos: o mel, o queijo de ovelha, o Moscatel ou a laranja. Nuno Gil ganhou o concurso, com um pastel que vem embalado numa caixa rectangular, a lembrar uma lata de conserva, e a indústria conserveira de Setúbal.
De Novembro até início do ano seguinte, Nuno faz também um bolo-rei com Moscatel, diferente do habitual: “Este é um bolo-rei que não leva massas lêvedas. É feito com massa de bolo, mais consistente.” A receita e os seus segredos foram-lhe confiados pela centenária Pastelaria Abrantes, entretanto encerrada, onde este bolo-rei se vendia como “pãezinhos quentes” na altura do Natal. À receita original, Nuno deu o seu toque pessoal, acrescentando o Moscatel na maceração dos frutos.
A par dos doces do Nuno, outra referência regional é o pão do senhor Julião, produzido a 5 minutos do Retiro Azul, em plena Serra do Louro, no Roteiro dos Moinhos Vivos. A padaria faz pão à antiga, com massa mãe, e coze-o em forno a lenha. É passar por lá e comprar.
Renascer em Azeitão
Até agora, fez-se um reconhecimento sensorial dos aromas do Parque Natural da Arrábida, que se mantém tão genuíno como as pessoas que habitam e produzem nas encostas e nas franjas das suas serras. Entre Quinta do Anjo e Palmela há todo um mundo artesanal a acontecer, mas será preciso seguir pela N357 até Azeitão para uma última prova e o tão merecido descanso, na Quinta de Catralvos.
A história da casa tece-se de sonhos e de muita vontade de fazer acontecer. Foi fundada por Manuel Beatriz, mas terá sido a filha Inês a assegurar a recuperação da quinta, não só enquanto produtora de vinho, mas também na sua vertente de enoturismo, que inclui alojamento. Num edifício próximo à adega e à sala de eventos – muito concorrida para casamentos – alinham-se cinco quartos, amplos e confortáveis, alguns com vista para a vinha. Partilham a sala de pequenos-almoços, num ambiente que se quer familiar, sendo que o pequeno-almoço é deixado à porta do quarto, em cestas de verga, para que os hóspedes o possam tomar onde bem entenderem.
Das várias propostas do menu de enoturismo, destaca-se uma que vai ao encontro do imaginário de qualquer apreciador de vinhos: a criação do seu próprio blend. Na sala das barricas, são colocadas quatro garrafas identificadas apenas com a casta. O “enólogo por um dia” prova cada lote, faz as suas anotações sobre os aromas, a acidez ou simplesmente a sensação que aquele vinho deixou. O desafio será sempre tentar reconhecer os dois vinhos novos e os dois vinhos com idade e começar a explorar a partir daí.
A mistura é feita em tubos de ensaio, de forma a perceber-se exactamente as percentagens que estão a ser casadas, agita-se e serve-se para provar. Dificilmente se acerta à primeira tentativa num blend ao gosto, por isso é não desistir e dar ao palato mais duas ou três oportunidades.
Esta experiência sensorial, e muito divertida, pode ser conjugada com a visita à adega. “Nós mostramos verdadeiramente a adega: as pessoas podem estar perto dos equipamentos em segurança e mais facilmente perceber todo o processo de produção de vinho”, garante Inês, visivelmente entregue a um projecto que quer fazer renascer Catralvos, com passos pequenos e autenticidade.
O Catralvos é terra, Tojo é mar. Esta é a conclusão tirada depois da prova de vinhos, com vista para a vinha e com os aromas do campo. “Trabalhamos muito a autenticidade. Relançámos Catralvos, que é uma marca mais clássica, com vinhos de colheita, de reserva e o Moscatel. E recentemente lançámos a gama Tojo, que valoriza o que temos aqui e honra o nosso terroir”, já que tem pouca intervenção no seu processo de produção.
Bernardo Soares, do enoturismo da casa, explica que o Tojo explora o castelão em quatro referências distintas. “O Blanc de Noirs, vinho branco feito com uma casta tinta, tem uma complexidade muito mineral; o Lágrima, um rosé muito elegante, feito com a melhor parte do sumo da uva; o Unoaked, um tinto muito flexível, com muita fruta; e o Clarete, que passa menos tempo em contacto com a pele da uva, é o que chamamos de tinto de Verão, para servir a 12-13°C.”
A gama Tojo inclui ainda duas referências feitas com arinto: o Indígenas e o Curtimenta, que, por ficar “em contacto com as massas durante oito meses, é um vinho branco de Inverno, muito interessante e em nada consensual”. Estes vinhos têm sido bem recebidos por quem procura vinhos mais frescos, minerais, com taninos suaves e menos teor alcoólico.
Bernardo Lago, o enólogo da casa, acrescenta uma das particularidades dos Tojo: são todos feitos com leveduras indígenas. “Na vinha, o enólogo escolhe as uvas mais sãs e faz um pé de cuba: num recipiente, a uva é esmagada e colocada ao sol durante um ou dois dias. A fermentação ocorre espontaneamente e depois é adicionado o mosto e segue para a cuba de inox.” Ao serem usadas leveduras indígenas, pode haver alguma heterogeneidade nos vinhos. E vale a pena correr o risco? “Sim”, remata. “Até porque desta maneira conseguimos extrair todo o meio envolvente da nossa zona.”
Mergulhar nas serras: a pé ou a cavalo?
Levando o terroir na memória gustativa, e conhecendo as histórias e as pessoas que valorizam os saberes e a proximidade à serra e ao mar, mergulha-se na natureza para ver, com outros olhos, as nuances de um território riquíssimo. Caminhar é a melhor e, muitas vezes, a única forma de explorar as serras do Parque Natural. A extensão é longa, daí a necessidade de planear o passeio estudando os percursos – muitos deles disponibilizados online pelos municípios de Palmela e de Setúbal. No entanto, a solo, corre-se o risco de passar ao lado de pontos pormenores de relevo.
A Sistemas de Ar Livre propõe uma série de rotas exploratórias, das quais se destaca uma que lembra também a herança gastronómica da região, ao terminar no Festival Queijo, Pão e Vinho da Quinta do Anjo, sempre que o passeio coincidir com a data do evento (Abril).
O percurso Terras do Queijo, Pão e Vinho começa na Capela de São Gonçalo, no entroncamento da N379 com a estrada Vila Amélia, e daqui parte-se para a Serra do Louro. À medida que se avança por caminhos de terra batida, muitos dos aromas descobertos no copo e no prato revelam-se aqui mais intensos, até porque a tranquilidade, dizem, apura os sentidos. Sente-se o alecrim, o tomilho, a alfazema, os orégãos.
O percurso tem algumas subidas, mas nada que não se faça sem ficar esbaforido. Aliás, é comum ver-se crianças nesta descoberta que tem um dos momentos altos lá em cima, onde as vistas sobre os estuários de Sado e Tejo açambarcam toda a atenção. A Serra do Louro é pontuada por uma série de moinhos que, em tempos, fizeram parte da importante indústria de transformação de cereais da região. O guia faz o enquadramento e, ao longo do caminho, assinala os pontos que poderiam passar ao lado num passeio por conta própria: bancos de ostras e corais fossilizados, ruínas dos períodos muçulmano e romano, as sepulturas colectivas calcolíticas.
Cinco horas depois – o tempo pode variar, já que o grupo acompanha o passo do participante mais lento – regressa-se à Quinta do Anjo. Se se fizer coincidir o passeio com o tal festival, que por norma acontece no primeiro fim-de-semana de Abril, há duas notas a reter: não é necessária inscrição prévia, é só confirmar se o passeio se fará no sábado ou no domingo, e comparecer no ponto de encontro às 9h30. No final, é feito o pagamento franco: circula uma bolsa onde os participantes depositam o valor que entenderem.
“Ó homem, onde é que tu andas? É aqui. É agora.”
Outra perspectiva da Serra do Louro, num percurso que inclui o Vale de Alcube, é proposta pela Terra Una, projecto criado pelo espírito criativo de Carlos Frescata quando percebeu “que não conseguiria mudar o mundo”, mas que, através dos cavalos, poderia passar uma mensagem. É que “o cavalo está sempre a dizer-nos, ‘Ó homem, onde é que tu andas? É aqui. É agora’.” A mensagem interioriza-se ao longo deste passeio, que começa na Quinta de São Brás, Palmela. António Gregório lidera e vai dando indicações sempre que os cavaleiros precisam de alguma orientação.
Uma coisa é certa: andar a cavalo na serra deixa o espírito mais atento, mais vivo. E, seguramente, eleva a sensação de liberdade ao ponto de se querer sair a galope pelos montes e vales. Mas não só não é recomendável, como António jamais permitiria. A passo, portanto, descobre-se a paisagem da zona oriental do Parque Natural da Arrábida até chegar à Quinta de Alcube. Passa-se pelas vinhas e segue-se para a adega, onde é servido um piquenique de enchidos e queijos, acompanhados pelo vinho desta quinta familiar, que produz cerca de 16 referências e vende 90 por cento da produção ali, na loja da adega.
Ao passeio de emoções fortes, segue-se a “descompressão”, de olhos pousados no Atlântico, agora já do outro lado da serra. Uma das esplanadas com a vista mais incrível sobre o mar é a do restaurante A Vela Branca, junto ao Parque Urbano de Albarquel. Continuando o fio condutor do que é endógeno, aqui serve-se lombo de novilho com molho de queijo de Azeitão. Sem medos.