Azeitão: um pequeno paraíso aqui tão perto
Do muito que há em Azeitão, tudo parece combinar com o vinho: a mesa abundante, a arte contemporânea, os queijos, a doçaria, as vistas da Arrábida. Em querendo, há sempre um copo de vinho por perto.
Antes de mais, e a pedido de vários azeitonenses, importa esclarecer que a designação genérica de Azeitão não se refere a uma vila, antes a uma “região” formada pela junção de duas freguesias que, entretanto, muito graças à fama alavancada pela doçaria e pelo vinho que aqui se produzem, ganhou honras de “localidade”.
Inserida no Parque Natural da Arrábida, a uma distância confortável do mar que lhe permite ser poiso de férias na época delas e sítio pacato durante o resto do ano, Azeitão consegue reunir numa modesta parcela de território todos componentes de um destino turístico de excelência: boa comida, belas paisagens, História e arquitectura e vinhos de excelência, num embrulho perfeito para dois dias de passeio.
A chegada a Azeitão, pela EN10, mostra rapidamente que é nessa estrada que se encontram quase todos os principais pontos de interesse da “vila”. Desde logo a imponente adega-museu Bacalhôa, com guerreiros terracota em azul-majorelle alinhados à entrada a anunciar que a história desta casa centenária se escreve em torno de um feliz (e já longo) casamento entre a arte e o vinho.
O circuito de arte contemporânea por que se tem de passar antes de deitar a mão a um copo de vinho é o preâmbulo perfeito de um passeio a dois tempos. Só na adega investe-se mais de uma hora a dividir a atenção entre as exposições da galeria de arte e um estranhamente atraente aparato de barricas que vão acompanhando o percurso. Nelas repousa durante ano e meio o moscatel corrente que mais tarde será dado à prova, mas é na “sala escura” que os vinhos envelhecem através da temperatura, num ambiente controlado com 60% de humidade.
Lá dentro, pequenos pontos de luz põem à mostra uma colecção de azulejos desde o século XVI até ao século XX, muito deles encontrados durante as obras de restauro do palácio da Bacalhôa, e que, juntamente com a música sacra que se ouve ao fundo, “trazem ao vinho aquilo de que precisa para se fazer bom: calma”, nota Karina Gomes, do departamento de comunicação da Bacalhôa.
A visita termina com uma prova de três vinhos na loja (desde 5 euros), mas a experiência completa inclui passagem pelo palácio da Quinta da Bacalhôa, um espectacular exemplar do século XV, a cerca de 500 metros da adega, onde está guardada uma das mais completas colecções de azulejos em Portugal.
Aqui é obrigatório espreitar a varanda panorâmica debruçada sobre o jardim francês e a vinha, e a famosa casa do lago, com uma galeria coberta onde se pode dar por terminado o passeio, com uma prova de três vinhos ou numa versão personalizada, que pode incluir degustação de produtos regionais e colheitas especiais (a partir de 12 euros).
Reconhecendo que esta poderá ser uma prática pouco recomendável para estômagos vazios, urge pensar no almoço. A vantagem de o centro da vila se concentrar num perímetro confortável para fazer a pé, ao redor da Praça da República, é que logo do outro lado da estrada se encontra a Casa das Tortas, unânime vencedora do quesito “onde comer bem em Azeitão”. Da antiga mercearia, fundada em 1910, Paulo Ferreira manteve praticamente tudo e acrescentou-lhe um restaurante que se tornou motivo de romaria pelo bacalhau à Tortas, uma reinterpretação do clássico minhoto, que aqui passa pela grelha antes de ser desfiado.
No Inverno, a comida de panela entra no menu e junta-se ao que se faz na brasa – a carne vem de um produtor local e o peixe de Setúbal –, mas, seja qual for a opção, do início ao fim da refeição está garantido um competentíssimo desfile de produtos regionais, com pão e queijo de Azeitão à entrada, vinhos da Península a acompanhar e a famosa dupla “torta e moscatel” para a fechar. Caso apeteça levar um bocadinho da experiência para casa, ao balcão há queijos, tortas, bolinhos secos e compotas para levar. À saída, vale a pena espreitar as sugestões da garrafeira e loja, na porta ao lado.
Segue-se uma voltinha obrigatória ao quarteirão que mostra uma sugestão para guardar para o dia seguinte: a pâtisserie Aux Fins Gourmets, uma padaria e pastelaria francesa que se encaixou no bairro para ser do bairro. Prova disso é ser referida pelos da vila como “a padaria da Isabel e do Christophe”, o casal que se mudou dos arredores de Paris para Azeitão, depois de 22 anos a gerir o mesmo negócio por lá. A corrida ao pão fresco, que começa a sair pelas 7h30, dura até meio da manhã, depois disso só com sorte se consegue deitar a mão a uma baguete, a um trigo de fermentação lenta ou ao pão-de-leite, que não vale confundir com o brioche, embora ambos cumpram com distinção tudo aquilo a que se propõem.
O facto de estarem numa geografia sobejamente conhecida pela doçaria local não intimida a dupla, até porque a ideia não é concorrer, é acrescentar. E nisso a montra, com tarteletes de fruta, brownies, éclairs e outras “delicadezas” doces e salgadas de receita francesa, não falha. O casamento com o produto local faz-se no emparelhamento dos doces da casa com moscatel, que é, aliás, a única bebida alcoólica da carta, mais apostada em chás e tisanas.
Hora do vinho
Quase sem querer, em Azeitão passa-se muito tempo de copo na mão. E já se sabe que a melhor forma de honrar o momento é acompanhando-o de qualquer coisinha para picar. No Wine Corner, o restaurante e wine bar da José Maria da Fonseca, há duas cartas para todos os dias: uma para os almoços e jantares, outra de petiscos, que serve de pretexto a uma paragem estratégica naquele exacto meio de tarde em que o almoço já não pesa e o jantar ainda não é assunto.
A carta da tarde é curta e certeira, com tábuas de queijos da queijaria I’m Cheese – que se conhecerá adiante e que produz a partir do leite das ovelhas da família Soares Franco –, tibornas, quesadillas, tacos e choco frito, para comer à mão. O grande desafio, depois, está na escolha do vinho, que só do portefólio da José Maria da Fonseca conta com 56 referências, a juntar tantas outras de fora da região. Não sabendo por onde começar, a equipa de sala trata de apresentar boas sugestões de harmonização e outras para beber a solo, sempre com opção a copo e acompanhando-as de uma breve história do vinho e de quem que o faz.
Não haverá, por isso, ocasião melhor para conhecer o trio da Quinta de Camarate, que traz o nome e a origem da quinta onde vive Domingos Soares Franco, e que é resultado dos 40 hectares de vinha ali plantados. Para prová-los em conjunto, o rosé, o branco e o tinto, idealmente por esta ordem, está-se no sítio certo e provavelmente o único nas redondezas onde o simples acto de beber um copo se pode rapidamente transformar numa prova de vinhos espontânea. Os preços a copo começam nos 2,60 euros, pelo que há muito espaço para a experimentação.
Um cinco estrelas na Arrábida
Ao fim do dia, uma curta viagem de dez minutos é suficiente para mudar totalmente o cenário, do centro da vila para um ponto muito específico onde se encontram um vale, uma ribeira e uma vinha. É aí que está, desde 1630, o edifício da Casa Palmela, o único hotel de cinco estrelas no Parque Natural da Arrábida. Foi o avô de Bernardo Holstein Guedes, actual proprietário, que acabou com o ciclo de abandono da propriedade. Agarrou na ruína que tinha herdado, e que já tinha sido uma quinta agrícola jesuíta, e fez dela uma casa. O neto comprou-a em 2015 e transformou-a num refúgio de luxo onde é o próprio a receber quem chega e a orientar o serviço para aquilo que quer proporcionar: conforto familiar.
Distribuídos pelos 72 hectares de floresta que compõem o terreno, estão 21 quartos e cinco villas, duas piscinas (uma só para adultos), um spa, um restaurante e um clube de actividades, que são, em rigor, motivos suficientes para não se querer sair. Nem faria sentido, não para já.
Os quartos com vista para o jardim deixam ver uma pequena porção do que está adiante no imenso vale verde que vai descendo até ao rio: há percursos para fazer a pé ou de bicicleta e pequenos palanques de madeira onde sabe bem parar com um copo de vinho quando o Sol se põe. Para jantar, a carta do restaurante é surpreendentemente corajosa em fugir de alguns básicos que costumam aparecer para agradar a turistas. A comida portuguesa está em franca maioria e o que vem de outras geografias foge do óbvio, como se vê na kofta de borrego que acaba de chegar à carta.
As vinhas logo à entrada sugerem que por aqui se faça vinho, mas não. As uvas seguem para a José Maria da Fonseca para serem transformadas num tinto de referência, o Pasmados, que naturalmente tem lugar de honra na carta de vinhos da casa, apostada em referências da Península.
Em estadas prolongadas, dará tempo para experimentar as aulas de yoga e pilates no meio do campo e planear uma saída à medida, com passeio de barco, degustação de produtos regionais e prova de vinhos.
Artesãos dos tempos modernos
Foi no final de 2020 que Maria Arriaga e Zé Lima se encontraram para dar a volta, ou antes trazer de volta, a arte queijeira artesanal. Maria já estava numa pequena queijaria que arrendou no Viso, em Setúbal, a pôr em prática tudo o que tinha trazido das várias expedições académicas que fez pelo mundo atrás da química perfeita do queijo – viria a descobrir que a paixão pelo produto é o que o torna especial.
Começou com o um queijo de cabra e hoje produz cinco diferentes: o Grande do Viso, de leite cru de vaca e casca lavada com vinho tinto, o Azul da Arrábida, de ovelha, o Veludo de Cabra, que também existe na variedade fresco, o coração de burrata e a mozzarella. Foi na viragem para os queijos ao estilo italiano que Zé Lima se juntou. E tudo mudou.
A queijaria passou para um espaço maior na Quinta de Camarate e passou a poder aplicar um sistema de produção integrada que faz toda a diferença na qualidade do produto. Por exemplo, a temperatura do leite que chega de manhã, idealmente nunca abaixo dos 17 graus, e que vai determinar a gordura que é essencial para o queijo criar sabor. A única forma de garantir que o leite não arrefece é ir buscá-lo ao lado de casa, e é isso que acontece na I’m Cheese.
As cabras estão na serra da Arrábida e ao lado da queijaria andam as ovelhas, que são parte de um rebanho de raça serpentina que a família Soares Franco tem há vários anos na quinta. Depois, o processo de produção propriamente dito é um exercício de paciência e boa-fé – curiosamente, parecido com o do vinho, em que o repouso também é fundamental.
Firmes na intenção de manter uma produção controlada e honesta para com o processo artesanal, Maria e Zé preferem falar em aumentar a oferta de produtos do que o volume de produção, que já quadruplicou desde a mudança para a quinta. Apesar de não ter loja e de a fábrica não estar aberta ao público, é possível passar para comprar queijo e, quem sabe, com sorte, encontrar já o primeiro lote de queijo de Azeitão, que deverá ser o próximo a juntar-se aos cinco magníficos.
De volta à EN10 e ao centro de Azeitão, encaixado numa fileira de restaurantes de choco frito, o Chef Stories - About Meat, aberto desde Maio do ano passado, trouxe a carne para a cena gastronómica da vila e tem-na muito bem representado desde então. Várias peças de várias origens e cortes, na panela, na grelha ou na frigideira, que se começam a mostrar nos croquetes de chambão com crosta de amendoim e no bao com cachaço de porco que chegam para acompanhar um pisco de pitaia e manjericão.
A proposta é ir entretendo as entradas com cocktails de autor e depois, quando for mais a sério e tiver de se enfrentar um t-bone de 1 quilo, passar para o vinho. A garrafeira, que ocupa uma das paredes da sala, reúne boas referências da região, com preferência pelos produtores locais, e é renovada regularmente. Para já, a Chef Stories está a sentir o pulso ao mercado local para mais tarde pensar em multiplicar a marca por outros restaurantes especializados.
Um caso sério de amor
“Isto, para mim, não é um negócio, é uma paixão”. António Saramago recusa-se a despir o discurso de emoções, precisamente por considerá-las um ingrediente indispensável ao vinho de qualidade. Formou-se em Bordéus, nos anos 1970, empurrado pelo ofício que desenvolvia desde cedo como adegueiro na José Maria da Fonseca, e aos 74 anos é o mais antigo enólogo do país em actividade.
Em 2002, começou a fazer vinho em nome próprio, não propriamente para ter uma marca de sucesso, mas sobretudo para multiplicar um estado de alma que, faça o que fizer, o leva sempre de volta às uvas. É no seu laboratório, um anexo na sua casa em Azeitão, que a alquimia perfeita dá origem às 16 referências que fazem o portefólio da marca. Compra as uvas a produtores vizinhos, aluga adegas aos amigos e é aqui, na finalização, que aplica os mais de 50 anos de experiência ao serviço do vinho.
Sobre os tais segredos que se diz estarem por detrás dos grandes produtos, José Saramago sabe pouco, mas suspeita de que o amor pela causa tenha um papel determinante no produto final. Para ele, que ainda faz consultoria em algumas quintas alentejanas, o vinho é uma matéria viva que deve ser respeitada pela sua nobreza e pelo tanto por que passou antes de chegar ao copo. E, tal como ser humano, tem dias bons e outros que nem tanto. Facto é que as conversas diárias que tem com o vinho e os rigorosos rituais de produção, sempre acompanhados de música clássica, não só têm dado bom resultado como servem de motivação à continuidade da marca, que, diz, “É tudo o que tenho para deixar”.
A pensar na perpetuação da história que começou a escrever há 20 anos, tem para breve o lançamento do AS Sucessão, um lote de 1200 garrafas para deixar aos netos, e que se vai juntar à mais valiosa das suas referências, o JMS, um moscatel superior criado em homenagem ao pai.
Infelizmente, o laboratório de António Saramago não está preparado para receber visitas, pelo que as provas dos vinhos que aqui se fazem só podem acontecer mediante marcação, com preço e local a combinar via e-mail ou telefone.
No adeus a Azeitão, fica a certeza de que é nas caixas mais pequenas que se encontram as melhores surpresas – e de que todas as que a vila tem para oferecer se constroem por caminho das memórias criadas à mesa, na vinha e na serra. Sempre que possível, com um copo de vinho na mão.
Este artigo foi publicado no n.º 4 da revista Solo.