Queijo de Azeitão: Quanto mais amanteigado, melhor
Os portugueses pelam-se por queijos que derramam. O caderno de especificações do queijo de Azeitão exige pasta semi-mole, mas não há nada a fazer – amanteigado é que é. E não há para as encomendas.
O mestre Rui Simões, da queijaria que leva o seu apelido, é aquilo que os jornalistas gostam de apelidar como “personagem”. Faz-se-lhe uma só pergunta e ele engata um discurso com metáforas que, por vezes, só quem é de Quinta do Anjo e arredores compreende à primeira. “O que lhe vou dizer pode parecer conversa fiada, mas acredite que não é. Faço queijo há 30 anos, mas todos os dias estou a aprender. Todos os dias.”
Desculpe lá, ao fim de 30 anos, o que ainda tem para aprender?, insiste-se. “Não se esqueça de que nós trabalhamos com leite cru, que é uma matéria-prima que levanta dificuldades. Voltei a acertar na fórmula do queijo amanteigado, mas andei aí dois meses a bailar de bico. De tal forma que eu próprio me interrogava se sabia ou não fazer queijo. Veja lá isso – 30 anos depois de ter começado isto. E se as coisas estão bem agora, não quer dizer que daqui a algum tempo, por causa do leite, das temperaturas ou de outro detalhe qualquer, o processo não volte a dar para torto.”
Sabemos que em matéria de queijos e outros produtos alimentares aplica-se a velha máxima de que quando a biologia começa a matemática acaba, mas ainda assim, persistimos: O que é tão crítico na produção do queijo de Azeitão? Responde o dono da Queijaria Simões: “Além da qualidade do leite, é a temperatura da massa, o processo de dessoração [escorrer o soro da coalhada] e a temperatura das câmaras de cura”. Mas isso é só uma questão de termómetros e aperto de prensas, certo? “Pois, pode ser, mas até os termómetros levantam dúvidas. Sabemos que a câmara onde entram os queijos deve estar entre 10 e 11 graus. E o termómetro marca isso. Mas, no outro dia, eu meti-me em tronco nu na câmara.” Perdão?! “Temos de perceber que o frio no processo de cura é muito importante. E a questão é esta: se a minha pele consegue tolerar o frio sem problemas de maior, isso é o ponto certo. Se eu sentir muito frio, essa temperatura vai também afectar a maturação do queijo que queremos amanteigado.”
Deixando de lado os métodos empíricos do mestre que se dedicou inicialmente aos queijos como hobby, esta questão do carácter amanteigado do queijo de Azeitão é algo que dá pano para mangas. De acordo com o caderno de especificações desta Denominação de Origem Protegida (DOP) reconhecida em 1986, a pasta do queijo deve ser “medianamente amanteigada e de corte facilmente deformável”. Ou seja, e à semelhança do que acontece com o queijo Serra da Estrela – o queijo que inspirou esta criação mais a sul –, a pasta do queijo de Azeitão deve entornar ligeiramente ao corte. Sucede que, por razões que carecem de estudo, os portugueses são maluquinhos por queijos que esbarrondam, que assim é mais fácil abri-lo pela capa e barrá-lo num pedaço de pão – tudo o que é contrário às boas práticas da análise sensorial, que exige o corte e degustação do queijo em fatia.
Sobre isso, Rui Simões tem duas opiniões vincadas: “Primeiro, se consultarmos documentos antigos comprovamos que os queijos de Inverno eram amanteigados (daí em diante, não); segundo, se 98 por cento dos consumidores quer queijo amanteigado, só tenho de fazer queijo amanteigado, certo?”
Os desafios da produção
Poder-se-á dizer que, com o queijo Serra da Estrela – e não “queijo da serra” – e com o queijo São Jorge – e não “queijo da Ilha” –, o queijo de Azeitão compõe o trio de luxo dos queijos portugueses. De resto, este queijo que hoje só é produzido no concelho de Palmela é o mais caro dos queijos portugueses. Melhor, a procura é bem superior à capacidade de produção.
Em tese, isto quereria dizer que estamos perante um caso de sucesso. Acontece que a realidade é diferente. E isto porque os preços pagos à produção estão inalterados há quase uma década, com o custo das matérias-primas em crescimento constante. É o que dá a dependência dos queijeiros face aos grandes grupos de distribuição. “São canais interessantes para escoamento do produto em quantidade, mas à custa de margens cada vez mais reduzidas”, defende Francisco Mancheta, dirigente da Associação Regional dos Criadores de Ovinos Leiteiros da Serra da Arrábida (ARCOLSA), a titular dos direitos do queijo de Azeitão.
Por outro lado, a forma como as grandes cadeias de distribuição cuidam dos queijos em loja é um problema crítico para o queijo de Azeitão, que, devido às suas dimensões e ao carácter frágil, deterioram-se rapidamente em termos de aromas, sabores e textura com as temperaturas de conservação muito baixas. “O problema é tão grave que alguns produtores predispõem-se ir às lojas dessas cadeias aqui na região para retirar de prateleira queijos que eles acham que já não dignificam as suas marcas. Mas isso é aqui, porque em Coimbra, Aveiro ou Porto não é possível.”
De facto, quem se der ao trabalho de comparar um queijo de Azeitão de uma mesma marca comprado num hipermercado no centro, norte ou sul do país com outro comprado numa loja de Azeitão, Palmela ou Setúbal vai, por via da prova, pensar que está perante dois queijos diferentes. Nas palavras de Henrique Soares, presidente da Comissão Vitivinícola da Península de Setúbal e ex-membro da câmara de provadores do queijo de Azeitão, “este é um queijo mimoso e delicado, pelo que as oscilações de temperatura afectam-no consideravelmente”.
Do ponto de vista da diversidade de perfis de queijo, outro problema é a concentração da produção. Há 20 anos existiam umas 10 queijarias. Hoje existem apenas quatro a certificar queijo. Esta foi a estratégia encontrada para ganhar os abençoados custos de escala para responder às regras dos grupos de distribuição.
Na realidade, e pandemia à parte, a produção tem aumentado, estimando-se que “ronde as 250 toneladas, o que se traduz num volume de negócio à volta dos 5 milhões de euros. Mais queijo houvesse, mais queijo se vendia”, diz Francisco Mancheta.
Como deve ser o queijo perfeito
Decano na câmara de provadores, Horácio Simões, da casa agrícola com o mesmo nome e produtor de moscatéis de referência na região, explicou-nos como se avalia, às cegas, um queijo de Azeitão. A crosta “deve estar lisa, bem formada, fina, inteira, de cor amarelo palha e uniforme”, sendo que a formação do queijo “deve ser regular, com abaulamento lateral e um pouco na face superior, sem arestas, com consistência semimole e alguma flutuação”.
Quanto à textura e cor da pasta, exige-se que esteja “bem ligada, fechada ou com alguns olhos, medianamente amanteigado, com zona de corte facilmente deformável, untuosa, de cor branca amarelada e uniforme”. Por fim – e como parâmetro mais importante – é obrigatório que o queijo se apresente “limpo de aromas” (nada de cheiro a redenho que muitos consumidores acham ser um factor distintivo), com sabor ligeiramente salgado e ácido.
Tratando-se de um queijo feito só com três ingredientes (leite cru de ovelha, cardo e sal) e de forma artesanal, é natural que as amostras enviadas às provas apresentem alguns desvios às normas. Na prova informal com Horácio Simões foi possível, por exemplo, penalizar um queijo por causa de algumas deformações na crosta, mas dar-lhe nota máxima no capítulo dos aromas e sabores. Num segundo, tudo estava mais ou menos perfeito ao nível da crosta, mas, ao corte, os olhos tinham dimensão excessiva na pasta, com algum aroma menos limpo. Um terceiro apresentava uma pasta com dois tipos de textura e algo salgado, e um quarto vinha com manchas oxidadas na crosta e uma pasta excessivamente amanteigada. Ainda assim, e de acordo com o especialista, só este último poderia merecer um chumbo.
Mas é a tal história, e dita de outra maneira: quando se trabalha com leite cru a matemática acaba quando a biologia começa.
Este artigo foi publicado no n.º 2 da revista Solo.