Olhar pelo retrovisor, manter os olhos na estrada

Silvina apanhou porrada do marido logo na noite de núpcias. Albino encheu-se de vinho tinto e a minha avó ficou desde essa noite a saber que casou com um homem que tinha má bebida.

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Silvina não sabe nada de política, nunca quis saber. Mas além de todas as preocupações que carrega consigo, inquieta-a o segredo que o meu avô guardou debaixo da cama. Quando casou com o Albino não sabia que ele era comunista. Ainda hoje não sabe o que significa a palavra "comunista", a não ser que era algo mau e que dava direito a prisão. Uma palavra como um diabo que deita labaredas pela boca aos que arriscam sequer verbalizá-la no escuro. Uma palavra que os senhores da PIDE querem extinguir.

Silvina também não gosta dos homens da PIDE. Nem de comunistas nem de PIDEs, ambos metiam medo como o marido, o patrão da cortiça e o maior deles todos, que até parecia simpático, o Botas. O Botas era o chefe de Portugal, o ministro das finanças, o manda-chuva dos pobres e dos ricos, embora chovesse mais na cabeça dos pobres que na dos ricos. Se o Botas soubesse do segredo do meu avô, mandava os PIDEs à casa de Silvina para limpar o sebo ao meu avô, e Silvina ficaria apenas com o pouco sustento da fábrica de rolhas para dar de comer a cinco bocas.

Silvina apanhou porrada do marido logo na noite de núpcias. Durante a festa que sucede o casório, Albino encheu-se de vinho tinto e a minha avó ficou desde essa noite a saber que casou com um homem que tinha má bebida. O primeiro enxerto aconteceu na noite de núpcias e já não tinha virgindade para ser perdida. É que Silvina não se casou com flores de laranjeira. Como era comum às moças pobres, casou com o primogénito no ventre. Podemos vê-la a sorrir numa fotografia a preto e branco no dia do casamento, antes da primeira pancadaria, em frente à barraca do Chegadinho, com os cabelos pelos ombros, bonitos e ondulados, apanhados de um dos lados por um travessão, com a barriguinha proeminente onde se abrigava o meu tio Norberto.

É verdade, na noite de núpcias, a primeira vez que levou pancada do Albino, Silvina estava grávida. Não era um caso excepcional. No bairro inteiro de barracas, rara era a mulher que não apanhava do marido. Só a viúva Ti Misérias é que tinha escapado recentemente a esse tormento. Por isso, era ela quem acolhia, muitas vezes a meio da noite, a minha avó e os seus cinco filhos que vinham fugidos do demónio do álcool. Silvina nunca entendeu a raiva do meu avô quando se entornava de vinho porque sóbrio era um doce de pessoa, mas com o álcool os olhos dele ficavam turvos e a minha avó era uma inimiga, alguém que o odiava. Incontáveis foram as noites em que Silvina fugiu a meio da noite com três dos filhos pelas mãos, o Norberto, a Luísa e a Olímpia (os outros dois filhos ainda não eram nascidos) e bateu à porta da Ti Misérias para que os acolhesse da tempestade do vinho que se aproximava da sua casa. Ficavam os quatro no corredor da Ti Misérias com a luz apagada, para que o Albino não desconfiasse e não fosse importunar a Ti Misérias e o resto do bairro àquela hora da madrugada. Muitas foram as vezes em que o meu avô se plantou à porta da viúva ameaçando a minha avó e a Ti Misérias, dizendo-lhes que as matava a ambas caso não abrissem a porta.

Eram horas de sufoco para Silvina e os três filhos pequenos, que tinham na altura entre os três e os dez anos. Ficavam quietos no corredor, agarrados à mãe sem dar um pio, depois de terem sido acordados e retirados do calor da cama a meio da noite. Ao fim de um tempo, às vezes levava umas horas, o demónio do álcool parecia largar o corpo do meu avô e ele desistia da minha avó, sem as forças que o vinho proporcionava, e ia chapado para a cama porque no dia seguinte também se fazia o vidro no qual ele trabalhava. Quando Albino regressava para a barraca, a minha avó e os meus tios podiam então adormecer, sentados nas cadeiras na barraca da Ti Misérias, que apenas tinha um quarto, uma cozinha e uma retrete. Dormiam nas cadeiras de plástico velhas e desemparelhadas que a Ti Misérias generosamente desencantou no lixo e colocou durante anos no seu corredor com o fim exclusivo de salvar a minha avó e os seus filhos pequenos.

Albino gostava de política. Ou melhor, gostava do Partido Comunista e detestava o Botas. O Botas era inimigo do povo e da sua família. Albino não sabia que ele próprio era o pior inimigo da sua família. Depois do álcool não se lembrava de metade das coisas, mas sentia na pele o estrago de Silvina quando voltava depois do trabalho sóbrio e a encontrava num silêncio impenetrável. Passava os dias seguintes a pedir desculpa e sem beber, mas não aguentava sóbrio mais de uma semana e logo se repetia a cena de terror a que sujeitava toda a família. Nos últimos tempos, Silvina ameaçara que se ia embora e lhe levava os filhos. Por isso, a única coisa estável na vida do Albino era o Partido Comunista. Lá, na sede do partido em Almada, uma barraca onde se reuniam no meio de um bairro pobre, ninguém o julgava. Sóbrio ou bêbado seria sempre bem-vindo e comunista. Os ideais pelos quais se batia eram compreensíveis por todos os camaradas com ou sem álcool no sangue. Vinha da sede do partido o segredo que levava para a barraca da sua família e escondia debaixo do colchão onde dormia com Silvina. Um segredo renovado todas as semanas, que clandestinamente distribuía. Papéis com palavras de revolução, que incentivavam à revolta e ao desejo de um país melhor para todos. Desde que os começou a levar para casa, fez jurar a Silvina que não lhes mexeria, era melhor ela nem saber o que lá estava, não fosse um dia algum PIDE saber e resolver revolver-lhes a casa. Segundo o Albino, aquilo era assunto para homens porque as mulheres se fossem levadas pelos PIDEs, além de violadas e torturadas, não tinham cabeça para aguentar o mal e voltarem sãs para casa.

No dia em que dois PIDEs bateram à porta da barraca dos Lucas, Silvina estava sozinha. Os miúdos andavam na rua a brincar e o Albino devia estar metido na tasca. Abriu-lhes a porta e sentiu o cheiro do perigo, mais propriamente da colónia cara que um dos PIDEs usava. Perguntaram-lhe pelo marido e Silvina informou-os que devia estar na taberna, mas não conseguiu deixar de perguntar porque procuravam por Albino. Não lhe responderam logo e em vez disso perguntaram-lhe se podiam entrar em casa. Não teve como recusar, deixou-os avançar pela barraca. Reviraram primeiro a sala onde estavam os três divãs dos filhos, e só depois foram até ao quarto. Foram rápidos a chegar ao segredo debaixo do colchão.

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