Aqui na América
O PREC de Musk e Ramaswamy
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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"Demasiadas notas", queixava-se o imperador José II a Mozart, de uma peça do compositor, influenciado pelos venenosos Salieri e Orsini, numa maravilhosa cena de Amadeus. "Não compreendo. Tem exactamente as notas, majestade, que são necessárias. Nem mais, nem menos", responde um exasperado Mozart. "Corte só umas poucas e ficará perfeito", ordena o monarca. "Quais poucas é que tem em mente, majestade?", desafia o génio de Salzburgo, embaraçando o imperador, que não consegue responder-lhe.
O Amadeus de Milos Forman, com argumento de Peter Shaffer e inspirado na peça de Pushkin, é assumidamente um objecto de entretenimento sem pretensão de documento biográfico rigoroso. Nem o verdadeiro Salieri terá sido o vilão caricatural do filme, nem o José II histórico era musicalmente ignorante (pelo contrário).
Mas é na cena das "demasiadas notas" que penso ao ler sobre as ideias de Elon Musk e Vivek Ramaswamy para a reforma radical do Estado que Donald Trump os mandatou para criar no designado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla inglesa, o mesmo nome de uma criptomoeda promovida por Musk), que ficará convenientemente à margem da estrutura orgânica do Governo, e por isso poupado à supervisão e à verificação de conflitos de interesse.
Eis o que Musk e Ramaswamy já disseram que querem fazer: cortar a despesa anual do Governo federal norte-americano em 30%, ou dois biliões (trillions, milhões de milhões) de dólares; reduzir o número de funcionários públicos em 75%; e encerrar 329 das 428 agências governamentais federais.
Cortar onde? Despedir quem? Encerrar que agências? Ainda estamos na fase das "demasiadas notas".
Trump toma posse a 20 de Janeiro e o DOGE ainda não tem existência formal. Mas já tem canal oficial de comunicação, com selo de organismo estatal na rede social X de Musk, e já corre um processo de recrutamento: Musk e Ramaswamy procuram pessoas de "QI elevado" dispostas a trabalhar sem vencimento e "80 horas por semana" durante o mandato do departamento, que terminará a 4 de Julho de 2026, dia do 250.º aniversário da independência dos EUA. Convenientemente, os voluntários do DOGE terão obrigatoriamente de deter uma conta paga no X (onde o saldo do despedimento de perto de 80% dos funcionários desde a sua compra por Musk é uma perda de valor de igual proporção à fuga de utilizadores e anunciantes).
Quem terá tempo, meios e vontade para trabalhar de borla, 80 horas por semana, durante o próximo ano e meio? Pessoas ricas mas desocupadas? Negociantes de criptomoedas? Influencers? Podcasters? É difícil conceber que sejam os indivíduos mais qualificados para planear e executar tão ambiciosa tarefa. Esses seriam antes, em teoria, aqueles que conhecem o Estado por dentro. Só que esses são também o alvo principal de Musk e Ramaswamy: os funcionários públicos federais.
Os EUA contam com cerca de 2,3 milhões de funcionários públicos. Civis, excluindo-se os militares, e federais, excluindo-se os dos estados e municípios, que são pagos pelos respectivos orçamentos, não pelo Governo nacional, e que por isso não cabem no mandato do DOGE. São menos de 1% da população norte-americana e, mais significativamente, são em mesmo número dos que trabalhavam na década de 1960, quando o Estado tinha muito menos atribuições. Ou seja, os funcionários norte-americanos dos dias de hoje até trabalham de forma mais eficiente que os seus colegas de há 60 anos.
Quem são estes funcionários? Aqui nos EUA, como aí em Portugal, pesa no imaginário popular e político uma caricatura injusta: a do funcionário público como um tipo cinzentão que nos empata a vida atrás de um balcão. A realidade é outra, e muito mais diversa.
Entre os funcionários públicos norte-americanos contam-se cientistas, carteiros, juízes, agentes do FBI ou da CIA, guardas fronteiriços, socorristas, guardas dos parques nacionais, controladores aéreos, meteorologistas, médicos, diplomatas, mecânicos ou técnicos informáticos, para não falar de centenas de milhares de trabalhadores civis essenciais ao funcionamento das forças militares mais poderosas do planeta e do sistema de saúde que trata dos seus milhões de veteranos (a excepção à ausência de um verdadeiro sistema público de saúde nos EUA).
As despesas associadas a estes dois milhões de trabalhadores representam anualmente entre 270 e 305 mil milhões de dólares. O despedimento de 75% dos funcionários públicos federais valeria, portanto, cerca de 10% dos cortes prometidos por Musk.
O despedimento em massa é não só inútil como, em teoria, difícil de se materializar. O Governo norte-americano não pode despedir funcionários públicos de forma discricionária. Musk e Ramaswamy apoiam-se aqui em duas estratégias.
A primeira é a recuperação de um decreto emitido no final do primeiro mandato de Trump que criava o Schedule F, uma nova categoria de funcionários públicos que abarcaria os trabalhadores habitualmente incumbidos de elaborar, executar e analisar políticas, como os economistas e os reguladores, e que transformaria os seus empregos de carreira em cargos de confiança política, passíveis de serem extintos pelo Presidente. Esse decreto foi revogado por Joe Biden e os democratas implementaram entretanto novos mecanismos legais para proteger os empregos públicos. Trump deverá recuperar o decreto no seu regresso à Casa Branca, mas não é claro quantos funcionários poderão ser efectivamente abrangidos pela reclassificação (a sugestão é de que seria feita uma leitura lata), nem que obstáculos legais podem aparecer pelo caminho.
A segunda é uma ordem geral de regresso aos escritórios dos funcionários públicos em regime de teletrabalho. A intenção publicamente assumida por Musk e Ramaswamy, num artigo que os dos escreveram no Wall Street Journal (WSJ), é criar "uma onda de rescisões voluntárias que será bem-vinda".
Mesmo que todos os funcionários em teletrabalho preferissem desistir dos seus empregos a regressar aos escritórios, tal não seria suficiente para atingir a redução de 75% defendida por Ramaswamy. Mais de metade dos trabalhadores federais, pela natureza das suas funções, não se encontra em teletrabalho. Entre os restantes, mesmo os que estão autorizados a trabalhar remotamente, grande parte não o faz. Há apenas 228 mil funcionários públicos federais a trabalhar a tempo inteiro a partir de casa, indica o Gabinete de Gestão e Orçamento do Governo norte-americano.
Onde cortar então? Os maiores itens de despesa federal, como indica o Washington Post, são a Segurança Social (1,45 biliões de dólares por ano), as Forças Armadas e o sistema de saúde dos veteranos (1,1 biliões), e o seguro público de saúde para idosos e inválidos, o Medicare (900 mil milhões). Os três representam cerca de metade do orçamento federal. A despesa com a Segurança Social e o Medicare está inscrita na lei e alterá-la, cabendo ao Congresso e não ao Presidente, seria difícil e eleitoralmente lesivo para os republicanos. Já mexer na Defesa encontraria enormes resistências no seio do próprio partido e arriscaria efeitos sistémicos na economia norte-americana, dado o peso da indústria militar.
À beira do pódio da despesa estão ainda os juros da dívida pública (incontornáveis, a menos que os EUA decidissem entrar em incumprimento) e as transferências do Governo federal para os governos estaduais (os estados republicanos são os mais dependentes de Washington).
Restam os habituais sacos de pancada dos republicanos, e sobretudo do trumpismo. O Departamento da Educação, que nos EUA tem sobretudo a função de definir e regular a política educativa dos estados, poderá ser abolido. A gestão do tráfego aéreo e o serviço meteorológico poderão ser privatizados. O financiamento da rede de rádio pública NPR, acusada pela direita de uma cobertura noticiosa parcial, estará na lista de cortes apesar de representar uma gota no oceano orçamental federal (não seria uma sentença de morte para a NPR, que beneficia de donativos, patrocínios e receitas de licenciamento). A redução ou mesmo o fim das contribuições para as Nações Unidas e outros organismos internacionais também estará em cima da mesa. Deste lote sairão certamente grandes anúncios e manchetes, com danos colaterais à mistura, mas uma poupança orçamental quase insignificante.
Mais complexa é a questão do apoio ao desenvolvimento internacional, eleitoralmente impopular à direita mas uma peça central do soft power norte-americano. Os republicanos, aliás, têm obra feita nesta área. George W. Bush, recordado internacionalmente pela desastrosa invasão do Iraque, também tem de ser lembrado como o "pai" do PEPFAR, um extraordinário programa de prevenção e tratamento da sida que terá até hoje salvado mais de 20 milhões de vidas, sobretudo na África subsariana. Este e outros programas sobreviveram ao primeiro mandato de Trump, apesar de se ter registado na altura uma mudança de prioridades: menos apoio, por exemplo, a projectos de igualdade de género ou de saúde reprodutiva, e menor ou nenhuma presença em certas geografias, a começar pela Palestina ou a Ucrânia.
Resta o ruído. No X, Musk e o DOGE partilham exemplos descontextualizados de despesas aparentemente absurdas, como um anúncio do Censos no intervalo da Super Bowl que custou 2,5 milhões de dólares. A fonte dessa informação, o Reader’s Digest, explicava o que Musk omitiu deliberadamente: era um apelo à participação por correio no inquérito à população, poupando assim milhões de dólares no envio de funcionários a cada residência no país. Ou como experiências científicas financiadas pelo Governo que, isoladamente, parecem caricatas para um leigo (pulverizar urina de lince sobre ratos alcoolizados), mas que se enquadram em estudos mais vastos e com propósitos compreensíveis (naquele caso, analisar relações biológicas entre alcoolismo e stress pós-traumático, problemas de saúde pública).
Junta-se agora à campanha a congressista de extrema-direita Marjorie Taylor Greene, já designada como elo de ligação entre a Câmara dos Representantes e o DOGE. Batem palmas os fãs de Milton Friedman e Javier Milei, citados por Musk. E apontam-se números a dedo. O das 428 agências governamentais, por exemplo, que passa a ideia de um total desvario burocrático e financeiro. As tais "demasiadas notas". Mas, para além das suas funções, omite-se que 98% dos funcionários públicos federais estão em apenas 24 organismos, sendo que 71% estão na esfera intocável da Defesa e Segurança.
O ruído não é inócuo. Várias das agências governamentais visadas têm contratos multimilionários com as empresas de Musk ou exercem poder regulatório sobre os seus negócios (entre outros exemplos delicados, corre uma investigação à segurança dos veículos autónomos da Tesla), suscitando receios de condicionamento ou represálias através do DOGE. Em 2024, Musk ganhou quase quatro mil milhões de dólares em contratos com o Governo federal norte-americano. E mais poderá ganhar nos próximos anos, com a crescente dependência da NASA face à SpaceX, ou a possibilidade de se desbloquear um negócio anteriormente chumbado com a Starlink para fornecer Internet a baixos custos a regiões rurais remotas.
Esse condicionamento, essa submissão do Estado a poderes particulares, poderá ser um dos mais relevantes impactos da prometida revolução de Musk e Ramaswamy. Outro, de carácter ideológico, é a punição de organismos e agentes conotados com políticas progressistas. Outro, igualmente dogmático, é a corrosão de um Estado que tem sido motor, e não obstáculo, do sucesso do sector privado norte-americano (onde estaria ele sem o Pentágono, a NASA, ou a máquina diplomática de Washington?).
O maior propósito declarado, o de equilibrar as contas públicas, é que não passa por aqui. Sob pressão demográfica, que será agravada pelo fecho de portas à imigração, a Segurança Social e o Medicare continuarão a aumentar a despesa federal. A receita, por seu turno, deverá cair com Trump: só a prometida redução de impostos sobre o rendimento e as empresas deverá custar cinco biliões de dólares ao longo dos próximos dez anos.
Cortar umas notas? Quais? E para quê, então?
Aproveito o período do Dia de Acção de Graças para umas curtas férias. Regresso a 16 de Dezembro. Muito obrigado pela vossa leitura, comentários e emails.