Com pés e cabeça. Algumas notas sobre pés
É claro que estar ao pé é estar próximo. No singular, é proximidade; no plural, é submissão. Estar aos pés de alguém. A diferença entre a proximidade afectuosa e a adoração subserviente é de um pé.
Uma história particular do movimento. Eu poderia falar de mim falando dos meus pés.
E para falar de pés teria de ir à rocha que piso anualmente com o meu pai, numa espécie de ritual da maré vazia, junto à falésia.
Teria de me recordar do conselho que ele me dava, antes dos testes: “Pés quentes, cabeça fria.” Qualquer sábio dirá que não se pode desvalorizar a temperatura das extremidades.
Para falar convenientemente de pés, tenho de admitir que no Ano Novo piso com o direito, e que faço o mesmo à entrada de um avião. Que, de todas as superstições, a que assegura um primeiro passo me parece a menos absurda.
E lembro-me que a tragédia de Édipo começa nos pés. Que Édipo significa “pés feridos” em grego. E que, quando ele nasceu, após a profecia, o seu pai ordenou que ele fosse abandonado com os pés amarrados e perfurados, para que não pudesse escapar. Cresceu com feridas nos pés.
De alguma forma esta é a nossa história. Estes somos também nós, de pés feridos, atrás das nossas profecias.
Quem quer que nos tenha dado estes pés, deu-nos para caminharmos pelas ruas, pelos cinemas, pelas florestas. E para tocarmos outros pés debaixo dos lençóis.
Eu gostava de os bater com força na água da piscina durante as aulas de natação e de, com a sua ajuda, impulsionar o meu corpo para a frente.
E recordo-me dos dias em que os fitava por muito tempo. No surf, os pés nus na prancha. No skate, a planta do pé a sentir o asfalto. Na dança. O movimento começava sempre de baixo.
Inicia-se tudo nos pés e, se os olharmos muito tempo, se estivermos preocupados com eles, o resto parece afinal menos firme.
Os pés das minhas filhas na minha barriga, por dentro, os pés que usavam para compreender os limites, para empurrá-los sempre mais. Doíam-me e comoviam-me, aqueles pés.
Os pés de um recém-nascido, a pele fina e enrugada, ainda desconhecedores de tudo. Os meses em que apenas sentem o mundo através do toque: o calor das mãos que os seguram, o frio de um chão inesperado, a textura dos cobertores. Os pés são, no princípio, instrumentos passivos. Experimentam o ambiente sem compreenderem o seu papel. Até que vem o primeiro passo.
Os pés são escolha do corpo todo. Parece que é dali que começa o desenho do corpo. Que grandes coisas se decidem. É preciso estarmos atentos aos nossos pés.
Os pés de David, esculpidos com tanto cuidado. As veias, os tendões, as unhas.
Em casa, descalço-me sempre à chegada.
A melhor coisa sobre os pés é que eles não precisam de ser metáfora. Basta caminhar.
É claro que estar ao pé é estar próximo. No singular, é proximidade; no plural, é submissão. Estar aos pés de alguém. A diferença entre a proximidade afectuosa e a adoração subserviente é de um pé.
E é preciso cuidar dos pés. Entregá-los de vez em quando a mãos desconhecidas que se debruçam sobre as unhas com atenção e lhes passam um pequeno pincel. Enquanto isso, falamos das sombras, de nomes e das nossas casas.
É possível amarmos uns pés. E isso aprendi com Naomi, com Tanizaki.
Talvez o espanto com os pés esteja relacionado com as fintas dos futebolistas, com as pontas das bailarinas, com os patins em linha. Com todos aqueles que dominavam o movimento a partir da base. Ou talvez fosse a Cinderela, ou o Big Foot e as suas pegadas grandiosas na floresta. As pegadas como a única evidência do movimento de quem se recusa a ser capturado.
O memorial de Gandhi em Nova Deli tem pegadas simbólicas que representam a última caminhada que fez antes de ser assassinado.
Ainda reparo na forma como a luz bate nos pés em cima do tapete, de manhã, quando está frio. Nunca durmo de meias. E sempre gostei de andar em bicos de pés.
Institui-se que se deve cumprimentar com as mãos, mas seria interessante fazê-lo com os pés.
Dizemos do que não tem base nem direcção: “Isso não tem pés nem cabeça.”
Os pés são o ponto de onde se parte e, ao mesmo tempo, o que permite partir. Diz-nos a mitologia que os pés serão a última coisa a petrificar.
Os meus pés vão-se mexendo, vão tocando um no outro, vão-se movimentando de forma quase autónoma, ora impacientes, ora resignados. Aguardam o fim do texto. O próximo passo.
Resta-nos caminhar. E esculpir as pegadas que foram interrompidas.