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Obra de Ubiratan Muarrek ironiza racismo e expõe tragicomédia da sociedade brasileira
No seu terceiro livro, O Meio do Céu, Muarrek cria uma peça de teatro que expõe o ridículo das relações sociais brasileiras. Lançamento será esta terça-feira (26/11), em Lisboa.
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Retirar personagens do interior de Pernambuco, com sua rígida divisão social, para colocá-los num ambiente fechado de Londres, onde toda a visão de mundo e forma de estar ficam desenquadradas. Este foi o caminho tomado pelo paulista Ubiratan Muarrek, de 58 anos, na peça de teatro O Meio do Céu, publicado pela editora portuguesa Assírio & Alvim.
Foi a primeira vez que Muarrek optou por escrever para o teatro. Em 2016, publicou o romance Um Nazista em Copacabana, em que traz uma história situada no final do regime militar brasileiro. Antes, tinha escrito Corrida do Membro, em que desconstrói o machismo tradicional brasileiro.
Jornalista formado em Direito, com mestrado em Mídia e Comunicação realizado em Londres, Muarrek esteve na BBC, num papel importante em meio à mudança dos meios de informação provocada pela Internet, que transformou a forma como hoje consumimos notícias. Atualmente, ele presta consultoria para empresas, governos e organizações não-governamentais na área da gestão de comunicação e imagem.
A seguir, os principais trechos da entrevista que o autor concedeu ao PÚBLICO Brasil.
A peça se passa no dia 25 de julho de 2000. Por que essa data?
Para mim, tem um significado muito importante. Foi o dia em que eu voltei de Londres, onde morei por dois anos, para o Brasil. Fiz meu mestrado e trabalhei na BBC em Londres. Foi uma cidade muito importante para mim, pois provocou uma reviravolta muito grande na maneira como via o mundo. Londres foi definidora do meu futuro intelectual e também do meu futuro profissional, e eu não estava pronto para voltar para o Brasil. Retornei porque minha mulher e eu íamos ter nosso segundo filho, e ela queria que fosse no Brasil. Eu aceitei, mas voltei contra a minha vontade. Tenho medo de avião, íamos voar pela Air France, e o Concorde caiu naquela manhã. Então, foi um dia trágico na minha vida, muito difícil, doloroso e muito importante para mim. Exagerei os significados da queda do Concorde, transformando isso num grande cataclismo, com coisas que mudaram em um nível planetário.
De alguma forma, para você, mudou o mundo?
Mudou o mundo e mudou o meu mundo, porque retornei para o Brasil a partir de uma experiência em Londres, que foi revolucionária no meu modo de pensar, de pensar minha profissão. Para mim, há um antes e um depois de Londres.
Poderia ser o 11 de setembro?
A queda do Concorde foi o meu 11 de setembro, o dia em que o mundo nunca mais foi o mesmo.
Na peça, existe uma ironia em relação às convenções sociais que cada indivíduo enfrenta. As personagens se conformam, aceitam, não se rebelam em relação a essas convenções sociais.
O título da peça, O meio do Céu, tem um sentido na astrologia que indica o potencial de realização na vida, o máximo potencial de um indivíduo em relação a tudo que o cerca. Quis transportar brasileiros de uma situação social muito rígida, e aí eu pego o interior de Pernambuco, onde você tem a figura muito clara do dono de terras, do latifundiário, para Londres. Há os trabalhadores de uma fazenda de cana-de-açúcar, a realidade deles da colônia, da fazenda e também os filhos do proprietário de terras. Quis deslocar esses personagens das condições que estruturam sua experiência social para uma outra realidade, em que essas estruturas não tivessem tanto peso. Então, o que acontece com as convenções sociais? Elas entram em curto-circuito. Essa é a tônica do meu trabalho.
Na peça, todas as brancas são Marias?
Todas as brancas são Marias. É um nome cristão. Descobri, depois de escrever a peça, que, em Pernambuco, os nomes compostos com Maria são muito populares entre as mulheres. Mas há um embate de nomes. Quando desaparecem as estruturas sociais que seguram as pessoas, elas buscam uma outra identidade. Então, ninguém no livro está satisfeito com seu próprio nome, com exceção da única que deveria estranhar e não estranha que é a Sofitel.
É o nome de um hotel.
O nome Sofitel é uma ironia absurda do livro. Não saberia explicar porque fiz isso, mas foi a ideia de criar estranhamento. Mas há um embate entre as Marias, as mulheres das classes altas, com os nomes das negras. A família da Sofitel é de colonos negros da fazenda. Fica um pouco essa coisa de classe social.
Você repete muitas vezes que o Concorde caiu e, a cada vez, isso ganha um sentido diferente. Como foi isso?
Isso é uma dinâmica própria da peça. Ela trabalha muito com repetições. Eu gosto muito disso como estilo. Gosto da ideia de que você vai aos poucos avançando a narrativa, reafirmando os pontos a cada investida, e ganhando novas camadas de significado. Eu me inspiro muito em (Samuel) Beckett. Acho que a peça Esperando Godot, por exemplo, faz esse jogo de repetições de uma forma magistral. Fellini trabalha muito com a ideia de repetições nos filmes dele. E também o Jon Fosse, o prêmio Nobel (de Literatura) tem o looping que vai avançando. Eles usam esse recurso narrativo que eu tenho verdadeira paixão como leitor e como escritor. É uma narrativa que gera uma espécie de desconforto. É muito difícil conseguir isso. Cria, às vezes, até uma certa aflição. Na hora que o leitor percebe a linguagem, fica um pouquinho mais confortável.
É como se cada personagem vivesse em uma realidade que só existe na cabeça dele.
Sim. Há quem diga que essa peça é sobre a discórdia. É como se, quando o Concorde cai, a concórdia desaparecesse da face da Terra. Tirei o chão a estrutura social desses personagens, o seu local de origem, que, no caso, seria o Recife, e joguei no ambiente hostil a todos, que é Londres. E eles têm que se segurar nisso e, nessa hora, os conflitos aparecem. O conflito é aberto e não é por acaso que escolhi personagens recifenses para isso. Gosto muito do caráter arretado dos recifenses, que é um povo que admiro demais. É incrível escrever com sotaque do Recife. Foi, para mim, um desafio delicioso. O recifense é, de fato, valente, é um povo politizado, que coloca suas questões de uma forma muito contundente.
Há personagens que veem o progresso como avenidas largas, edifícios altos, completamente na contramão de uma cidade mais humanizada.
Essa é a visão do (personagem) Fausto. Fiz um Fausto à minha maneira. E o Fausto é um mito muito interessante, porque ele se prestou a todo tipo de enfoque, e cada um consegue fazer um Fausto à sua maneira. Ele vai desde Goethe, Thomas Mann, até a cultura popular. Então, com a liberdade desse mito, resolvi fazer o meu Fausto. O meu Fausto destrói tudo. Quer dizer, o modelo predominante de desenvolvimento brasileiro é o Fausto. Um Fausto ridículo, sempre pequeno, que nunca cumpre as promessas, com ele tudo sempre fica muito mal feito, pelo meio do caminho. Essa ideia de progresso é destrutiva das relações sociais, das questões ambientais, de uma visão humanizada. Basta ver o que fizeram com a Praia de Boa Viagem, no Recife, com os edifícios tomando toda a orla. Acho que essa visão de desenvolvimento tosca não tem mais lugar na história, mas ainda permanece no Brasil. Ela é ridícula, de um cômico absurdo, e eu exploro isso no meu livro.
E próximos projetos?
Eu já tenho um próximo livro a caminho. Vinha de romances e, agora, radicalizei numa peça de teatro. Vou continuar investigando no próximo livro. Será sobre essas estruturas brasileiras, que é de onde eu venho, que são a matéria-prima do meu trabalho. Será sempre de uma forma crítica, a partir de um ângulo tragicômico, porque acho que, hoje em dia, o que nós assistimos na política e na mídia é uma comédia. Quero dar a primazia para a comédia. Mas não sei se vou continuar no formato teatral ou se vou buscar um formato híbrido. Mas só na hora que começar a escrever é que vou descobrir.