Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães: “torcidos” e “económicos”
“Se alguém chamar pobres a estes camponeses, eles não se sentirão ofendidos, mas ficarão decerto perplexos: pois se têm na quinta tudo o que precisam para a sua vida diária e até para uma emergência.”
A Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães, estabelecida em 1989, tem sido um ponto central de cultura e conhecimento nesta vila do distrito de Bragança situada entre os rios Douro e Tua. Cristina Lima, natural de Carrazeda de Ansiães e colaboradora da biblioteca há 21 anos, conta que “o edifício onde atualmente se situa a biblioteca foi construído em 1736 para albergar a Câmara Municipal quando a sede do concelho se mudou para esta vila, vinda de Ansiães”. Ao centro da fachada, há uma pedra de armas com a data da construção do edifício, onde também funcionou o tribunal e a cadeia. “Foi cadeia até ao 25 de Abril. Se reparar, as portas e janelas lá em baixo ainda têm grades. E também foi escola preparatória no final da década de 70 e início da década de 80. Eu andei aqui na escola. Depois, em 1999, o edifício foi remodelado para instalar a biblioteca.”
Para Cristina, o papel da biblioteca vai muito além de ser um mero depósito de livros: “É fundamental ir ao encontro das necessidades da comunidade onde está inserida e dos seus utilizadores. É um centro de cultura, especialmente na área educacional, que dá a conhecer o seu acervo de livros, daí que façamos diversas atividades ligadas à promoção do livro e da leitura, desde apresentações de livros até ao apoio a autores locais. O nosso município tem apoiado feiras do livro, encontros com escritores, atividades lúdicas, espetáculos musicais, teatro, feira medieval, entre outros.”
Esmeralda Pimentel trabalha na Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães desde a sua criação, em 1989: “A Biblioteca começou nos Bombeiros Voluntários, onde tínhamos três salas. Depois, a Câmara remodelou este edifício e viemos para aqui. Temos cada vez menos pessoas, e os que vêm são, na sua maioria, adultos. Antigamente, íamos às escolas nas aldeias e realizávamos atividades com as crianças, mas agora tudo se concentra no polo escolar da vila, o que torna as coisas mais difíceis. No entanto, continuamos a fazer muitas atividades com o infantário da Santa Casa. Até certa altura, tivemos aqui Academia de Música, e agora vamos ter a Academia Sénior. Por fim, há três ou quatro anos que apresentamos sempre uma ópera no mês de agosto. No ano passado, foi o Barbeiro de Sevilha.”
Cristina sugeriu-me a leitura do livro Não Criei Musgo, de John Gibbons. “Este livro oferece uma visão fascinante sobre a vida em Trás-os-Montes em 1939. Embora distante no tempo, há muitas coisas neste livro que ainda ressoa nas nossas tradições e na nossa forma de estar, proporcionando entretenimento, mas também uma reflexão sobre a nossa cultura e identidade.”
Não Criei Musgo retrata a vida de John Gibbons, um britânico que decide fazer daquela região isolada o seu lar temporário. O livro oferece-nos uma visão cativante da sua experiência de quatro meses a viver numa aldeia do Alto Douro, à época (e ainda atualmente) uma das regiões mais isoladas de Portugal Continental, partilhando o quotidiano dos seus habitantes. A obra não é apenas uma autobiografia, como inicialmente pretendido pelo autor, mas sim um relato vívido e humano de uma comunidade portuguesa no interior do país.
Gibbons viajou para Portugal à procura de um local onde pudesse escrever de forma económica, mas acaba por se apaixonar pela simplicidade e hospitalidade dos aldeões. A sua bagagem modesta, que incluía uma máquina de escrever, contrasta com a riqueza das experiências vividas na aldeia. O autor descreve com humor e detalhe a dificuldade de comunicação e os desafios financeiros enfrentados durante a sua estada, mas destaca sobretudo as amizades autênticas que formou com os cerca de trezentos habitantes locais.
À chegada, ele situa-nos, afirmando: “Aqui estamos nós, pois, no topo do apertado vale que sobe a pique desde o Douro, de que dista uma boa hora”. Este cenário natural, com penhascos que se erguem imponentes, acaba por se tornar um personagem à parte na sua narrativa. O autor dá vida à sua nova casa ao descrevê-la: “Então, esta é a minha casa, não? O homem está a abrir uma porta. Bem, parece realmente o que me foi prometido. Entro num sítio escuro, sem janelas, uma espécie de arrecadação com pilhas de batatas, sacos de milho e outras coisas do género. Mais ao fundo, uma escada dá acesso a uma sala lajeada completamente vazia. Em frente, há uma divisão muito melhor, com uma verdadeira janela e cheia de luz. Tem o soalho de madeira, uma esteira de palha, uma cama que mete respeito, uma cadeira, uma mesinha e um lavatório improvisado. É tudo. Seria o suficiente para qualquer cavalheiro do Porto ou de Lisboa que viesse passar uma ou duas semanas na época de caça; se trouxesse alguns amigos consigo, haveria espaço para algumas camas mais. Para mim, foi também o suficiente. Tenho tudo o que preciso, e muito o agradeço ao meu amigo de Londres. Como tomada de posse, coloco a máquina de escrever sobre a mesa. O meu amigo português apresenta-me a chave da casa como prova de que sou agora o novo dono.”
São inúmeros os apontamentos cómicos da realidade rural ao longo da obra, assim como a simplicidade da vida no campo: “Se alguém chamar pobres a estes camponeses, eles não se sentirão ofendidos, mas ficarão decerto perplexos: pois se têm na quinta tudo o que precisam para a sua vida diária e até para uma emergência, para que há de uma pessoa querer água canalizada na cozinha? Há água nos jarros, e, mal se suja um prato, logo é escrupulosamente lavado. Atira-se a água suja para as pedras lá de fora e em poucos minutos o sol terá sumido tudo. Para quê janelas, quando, no Verão o brilho do sol se tornaria insuportável? Quadros? E para quê? Enquanto nós, os de um subúrbio londrino, temos de comprar cópias de qualquer coisa bela que faça esquecer o panorama das ruas pardacentas que fazem parte da nossa vida, estas pessoas daqui só têm de deitar uma olhadela da porta para as montanhas para admirar a própria beleza, ao natural. (…) Creio que as pessoas daqui vivem melhor do que qualquer trabalhador de uma grande cidade inglesa”.
A adaptação de Gibbons ao seu novo mundo não foi isenta de percalços: “Continuo a ter os meus pequenos contratempos, evidentemente”. Um desses contratempos está relacionado com a gastronomia, cuja abundância de azeite lhe provoca algumas surpresas intestinais que se tornam mais desconfortáveis pela “falha de certas acomodações, tão vulgares em Londres”. Mas a sua forma bem-humorada de abordar estas dificuldades traz um riso natural à leitura: “Certamente que também Robinson Crusoé achou, ao princípio, a carne de cabra levemente indigesta”, escreve a dada altura.
Um dos momentos mais reveladores da obra é a descrição da sua visita ao barbeiro, onde Gibbons percebe que, além da cultura, o social também é fundamental. “É verdade! Até barbeiro tínhamos na nossa pouco sofisticada aldeola...” O barbeiro local, que apenas cortava cabelo nas horas vagas, é um reflexo do modo de vida multifacetado dos habitantes, que se dividem entre as obrigações agrícolas e as interações sociais.
Mais do que um conjunto de crónicas de uma experiência pessoal, Não criei Musgo é uma janela para um mundo em transição, onde Gibbons captura a essência da vida rural portuguesa, repleta de simplicidade e com uma relação profunda com a terra. Nas palavras do escritor britânico há um convite implícito a refletir sobre as pequenas coisas que, nesse tempo, eram consideradas essenciais, o que nos faz pensar sobre o que valorizamos nestes tempos em que vivemos.
Este livro e a minha visita à remota Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães foram uma verdadeira lição sobre a vida, o isolamento e a beleza que se encontra na simplicidade.
– Cristina, onde posso comprar bom pão por aqui?
– Ah, isso compra aí em qualquer padaria. Encontra pão e biscoitos; compre uns “torcidos” e uns “económicos”.
Comprei folar de azeite e ovos, além dos biscoitos recomendados pela Cristina. Estavam deliciosos, sabiam a Trás-os-Montes. Enquanto os comia, reli algumas páginas de Não Criei Musgo. Tão simples quanto a vida pode ser.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990