Um bom bocado
O tempo tornou-se leve. O que nos pesa agora é perceber que já o gastámos em boa dose e que temos de o aproveitar bem.
Talvez a pergunta que mais se repita na infância seja: "Ainda falta muito?" Quando somos miúdos, o tempo tem um peso que não se desembrulha. Cai e não parte. É uma mancha compacta e sem abertura, onde não vemos nem princípio nem fim.
Eu era ainda criança e queria chegar a qualquer lado, sem saber aonde ia. E não via a linha cronológica a estreitar-se, apesar de andar sempre com um calendário de bolso. Agora a mente ficou ocupada por esta imagem e achei enternecedor guardar na minha carteira, raras vezes com notas, um calendário pequenino, onde nem sequer me importavam os feriados, as pontes ou em que dia seria o Natal.
Talvez espreitasse para o meu aniversário, mais pelo momento feliz em que a minha mãe me faria de novo o bolo de bolacha, o grande acontecimento que abafava a ausência de festa. Na altura não sabia, mas agora penso como foi tão bom ter aquele bolo esculpido pelas mãos da minha mãe, em vez de uma frota de tortas do supermercado. Olhava, inquieta, à espera de ver o bolo acontecer, pensando como podia a minha mãe ter paciência para fazer aquelas torres pouco exatas, molhar bolacha a bolacha com precisão, bater a manteiga, sem baixar os braços. Pareciam-me horas, e talvez fossem. A dada altura, a minha mãe sentava-se para barrar o bolo com uma faca, ou talvez fosse uma espátula. Nós sabíamos que só no dia a seguir íamos poder comer o bolo e isso fazia parte da magia.
Exatamente como no tempo em que o Natal acontecia só no dia 25 de manhã e a espera era um tormento. Nós somos também a nossa expectativa. "Ainda falta muito?", pensava eu. Fosse do bolo, do Natal ou do tempo que não me fazia ser ainda a adulta que eu pensava que queria ser. Como é que podemos alguma vez querer ser adultos e ter responsabilidades? Eu pensava que queria. Quis mesmo. Lembro-me, como se fosse hoje, dessa angústia ser dilacerante e de não ver o tempo a fazer-me a vontade, tornando-me adulta de repente para poder ser como os mais velhos. Era isso que eu queria, afinal: queria ter conversas com os adultos, queria que tivessem em conta a minha opinião, queria que na escola me chamassem para o grupo deles, em vez de acharem só graça à miúda que já sabia de cor nomes, países e canções.
Mas o tempo não me deu tréguas. O tempo foi até hostil comigo, quando me deu uma hepatite longa e eu tinha de a curar antes da minha comunhão solene. "Ainda falta muito?", pensava eu, deitada na cama, perdendo a escola e os poucos amigos. Faltava sempre muito. Quando se é criança, o tempo nunca mais chega, a viagem nunca mais acaba, a meta está sempre longe e uma constipação que seja pode durar uma eternidade. Foi longa a hepatite. Os pratos eram sempre os mesmos, os sabores iguais. Pensei que fosse uma sentença sem fim. Talvez tenha sido um mês ou dois. Eu achei que era a vida inteira e que a infância se ia resumir a bife grelhado ou alface com limão. O tempero da vida ficara adiado.
A dada altura, já no embate das primeiras responsabilidades, percebi que já não faltava muito ou nada para ser adulta, mas ainda me rodeava de uma certa invencibilidade para nos rirmos do tempo. Agora, a meio da vida, sabemos que já não falta muito. E é agora que o tempo se vive num sopro, percebendo que ainda ontem foi verão e hoje será Natal de novo. Repetiremos então muitas vezes para nós e para os outros que vale a pena viver um dia de cada vez, que esse cliché, lembrado até à exaustão e do qual rimos no passado, faz agora sentido para nós. O tempo tornou-se leve, o que nos pesa agora é perceber que já o gastámos em boa dose e que temos de o aproveitar bem.
Eu já não sou a miúda que guardava o calendário de bolso na carteirinha só com moedas. Já não vejo o bolo de bolacha a ser feito. Já não espero pela manhã do dia 25 para ver o Natal acontecer. Vivo agora, mas não tenho pressa. Tenho, aliás, nos momentos em que me sento ao sol sem plano nenhum à frente, o melhor do meu tempo. É bom ser adulto só para não desejar ser crescido com aquela vozinha constante dentro de nós a perguntar: "Ainda falta muito?"
O tempo tem outra velocidade e outro peso. Mas agora que não queremos ser crescidos nem saber como é estar apaixonado pela primeira vez, deixem-nos saborear cada instante, sem pressa. Não quero cortar meta alguma. Quero ir em passada larga, dizendo a mim mesma que talvez ainda falte um bom bocado.
O coração ainda bate.