Amorzade

Venderam-nos esta patranha de que é má ideia envolvermo-nos com amigos, porque “pode estragar a amizade”. E se a tornar melhor?

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"Há amigas por quem me apaixono novamente de todas as vezes que saímos" Edward Eyer/pexels
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“Nelson, abrimos uma porta que é muito importante.” E foi assim, no final da nossa conversa mais recente, que a minha psicóloga percebeu que acabara de descobrir uma mina de ouro. Tínhamos começado a falar sobre algumas das minhas amigas. Sou um homem de sorte: estou rodeado de mulheres brilhantes, divertidas, meigas, bonitas. É ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Quem não se apaixonaria por elas?

Quando penso na mulher que gostaria de encontrar, vejo-a nelas. Tem um pouco da Ana, um pouco da Catarina, um pouco da Marta, um pouco da Maria. Na verdade, talvez tenha muito de cada uma delas. “Não precisas de procurar a mulher da tua vida porque já a encontraste. A mulher da tua vida somos todas nós”, disse-me a Marta este verão. É capaz de ter razão. Se assim for, não me saí nada mal.

Em muitos momentos da minha vida (talvez mais vezes do que desejável) estive enamorado de mulheres que são hoje amigas preciosas. Todas elas são a lembrança de algo que falhou. Em alguns casos, porque não soube fazer melhor. Noutros, porque não era eu quem queriam. Não sei qual das situações é mais difícil de aceitar: ter tido algo precioso e não ter sabido cuidá-lo; ou a sensação de que, por mais extraordinário que seja, não sou suficiente. É tramado manter a rejeição (ou a recordação dela) tão perto.

Afastei-me de todas estas mulheres incríveis, em alguns casos durante anos, até que a vida tratou de nos juntar de novo. Ainda bem que fomos capazes de fazê-lo, porque sou mais feliz quando as tenho por perto, mas sei que escolhi o caminho mais difícil. É uma tortura este flirt constante com algo que nunca chegou a ser. Por vezes, acreditamos que estamos curados desta doença, convencemo-nos que só a amizade nos chega, até sermos assaltados pelos pensamentos de sempre: e se tentássemos? E se funcionasse? Queremos arriscar, mas congelamos de medo. Temos pânico de estragar tudo.

Há no aprofundamento destas amizades uma contradição insanável: quanto mais tempo passamos com uma amiga que nos é especial, quanto mais próximos nos sentimos dela, mais nos custa aceitar que não possamos ter tudo. A amizade sabe-nos a prémio de consolação.

Há amigas por quem me apaixono novamente de todas as vezes que saímos, como se cada encontro fosse o primeiro. Há amigas que são como amantes com as quais não tenho sexo (o que é uma pena porque isso da assexualidade é coisa que não me seduz). Quando penso nelas, amizade parece-me uma palavra curta para descrever esse sentimento temperado também por paixão e desejo. É algo mais do que amizade, mas talvez não seja o amor como muitos o veem. Será porventura amorzade, palavra que já merece um lugar no dicionário, até para lhe tirar alguma má fama de que goza, como se houvesse algo de errado em nos apaixonamos por uma amiga ou a querermos despir e levar para a cama. Como se uma amizade temperada com tensão romântica e/ou sexual não pudesse ser genuína.

Venderam-nos esta patranha de que é má ideia envolvermo-nos com amigos, porque “pode estragar a amizade”. E se a tornar melhor? Chamem-me o que quiserem, mas acho precisamente o oposto: antes envolver-me com uma amiga do que com alguém com quem não tenho qualquer cumplicidade ou intimidade. Não troco a companhia de nenhuma das minhas amigas por um encontro com uma desconhecida. Vale mais um jantar com elas do que uma queca combinada no Tinder ou no Instagram.

“Num mundo ideal, viveria numa relação poliamorosa com as minhas amigas e seria feliz.” Foi esta a última frase que disse à minha psicóloga. Suspeito que tão cedo não me safo de ter de lhe explicar isto.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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