Um ensaio sobre a cegueira

Criada para ser inclusiva, a exposição mostra-nos 12 fotografias, sendo que cada uma delas é acompanhada por uma réplica que simula uma doença visual comum e por uma impressão tátil.

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Uma pequena mão a explorar a fotografia de Ulla Lohmann, na exposição World Unseen João da Silva
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A exposição fotográfica "World Unseen", que esteve recentemente em exibição na sede da Associação dos Cegos e Ambliopes de Portugal (ACAPO), em Lisboa, não é uma exposição convencional, mas uma experiência que transforma a forma como vemos a fotografia, indo além das imagens que observamos. Porquê? Porque nos dá a oportunidade de tocar, ouvir e sentir as fotografias.

Criada para ser inclusiva, a exposição mostra-nos 12 fotografias em impressão normal, sendo que cada uma delas é acompanhada por uma réplica que simula uma doença visual comum (glaucoma, cataratas, retinopatia diabética, degeneração macular e retinite pigmentosa) e por uma impressão tátil. A exposição inclui ainda descrições auditivas e em braille, permitindo que todos explorem a beleza visual sob uma nova luz.

A interação entre quem vê e quem não vê cria um espaço de diálogo e empatia, onde a inclusão se transforma num ato de partilha e descoberta. Para aqueles que podem ver, é uma oportunidade valiosa de refletir sobre como seria ver fotografias sem a visão. Ao passar os dedos sobre as fotografias, vivenciamos emoções e narrativas que, de outra forma, poderiam passar despercebidas. Para os que não veem, a experiência é revolucionária.

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Fotografia de Samo Vidic, na exposição patente na ACAPO, em Lisboa DR

Durante a visita, conheci Maria da Conceição Romano.

— Como é ver com os dedos?

Espetacular. A definição do braille está muito boa, está bem saliente, assim consigo ler muito bem.

E as fotografias, consegue vê-las?

Sim, sim, com a ajuda do rapaz que me está a acompanhar, consigo perceber. São coisas diferentes; é preciso um enquadramento, mas depois percebe-se. Isto aqui, por exemplo, são os olhos, não é? E aqui está o nariz, depois há aqui uma série de cogumelos, muitos cogumelos, o pescoço e o corpo. Dá para perceber perfeitamente, está muito bem. É uma experiência nova, diferente; para mim, está excelente.

Nunca conseguiu ver?

Eu já nasci assim, via só um poucochinho, mas há uns quatro anos perdi totalmente a visão. Já era pouco, mas fazia diferença quando andava na rua. Dava para perceber as coisas mais ou menos. Quando era miúda, andei na escola e conseguia ler com grande esforço as letras mais vincadas. A minha mãe é que me lia os livros que eram para estudar. Aos 15 anos aprendi braille e continuei a estudar e a fazer a minha vida normal.

E profissionalmente, o que fez?

Trabalhei nove anos como telefonista numa empresa, depois fui para a Câmara de Lisboa, onde estive 37 anos e meio, primeiro no serviço de leitura para deficientes visuais e mais tarde como técnica superior de bibliotecas e documentação. Fazia a transcrição dos textos para braille, impressões e catalogação, atendia os leitores, ou seja, fazia o trabalho todo de uma bibliotecária. Trabalhei 46 anos e meio, até aos 69 anos, agora tenho 73.

Teve e tem uma vida boa?

Sim, muito feliz. Quer dizer, perdi o meu marido há quatro anos, mas tenho uma filha e dois netos. Tenho uma vida boa. Procuro ter atividades, caminhar, ando no ginásio, faço hidroginástica, tenho aulas, estou na tuna da nossa academia, faço muitas coisas. Tento fazer o possível para não estar parada.

E como é viver sem ver num mundo pensado para quem vê?

Ah, isso é um quebra-cabeças! Ainda agora, para vir para cá, desde a zona onde eu moro foi uma aventura. São os carros em cima das passadeiras que a gente quer atravessar e não pode; são as trotinetes fora do lugar, e eu já caí três vezes por causa de trotinetes no chão; são os transportes que não anunciam as saídas. Enfim, vivemos constantemente com muitas dificuldades e obstáculos. Mas, pronto, vamos tentando vencê-las.

Tentando. Como quem diz, ensaiando e vivendo numa realidade que, como uma fotografia, pode estar focada, desfocada ou queimada, desafiando constantemente a percepção. No Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, a falta de visão torna-se numa metáfora para a condição humana: a incapacidade de compreensão e empatia entre os seres humanos, frequentemente refletida na maneira como as pessoas ignoram ou não percebem as necessidades e dificuldades dos outros. Felizmente, às vezes, as impressões táteis permitem ver o que os olhos não conseguem.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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