Woody Allen, Musk e a primeira-dama

Se Allen fosse fazer um filme sobre esses personagens — o que, graças a Deus, não está fazendo —, seria uma comédia sobre como a humanidade terceirizou suas neuroses para as redes sociais.

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Imagine uma cena em preto e branco, Manhattan ao fundo. Wood Allen, sentado no divã, tenta processar o último episódio da série "Redes sociais e seus descontentes" em sua sessão semanal de psicanálise. De um lado, a primeira-dama do Brasil, Janja da Silva, mandando Elon Musk fazer uma determinada coisa. Do outro, o bilionário excêntrico respondendo com um emoji. Kafka encontra Black Mirror num roteiro que o cineasta jamais conseguiria escrever.

Seu analista diria que isso tudo é sobre poder, mas o que não é sobre poder em Nova York? Ou no Brasil? Ou no Twitter? Perdão, X — essa letra que parece saída de um dos seus pesadelos existenciais dos anos de 1970. É como se o mundo inteiro tivesse se transformado num grande teatro do absurdo, onde políticos e bilionários trocam farpas públicas com a mesma casualidade com que Allen troca suas lentes de contato.

Vejam só: uma primeira-dama, num evento do G20, usa um palavrão em inglês para confrontar o homem mais rico do mundo, agora integrante anunciado do governo dos Estados Unidos, que responde com um emoji — aquelas carinhas que parecem saídas de um filme B dos anos 50. Se isso não é material para uma comédia existencial, não sei o que seria. É como Annie Hall encontra 1984, mas com muito mais hashtags e menos saxofone.

O que intriga Allen é como chegamos até aqui. Em que momento se definiu que o destino das democracias seria decidido em 280 caracteres? Aparentemente, toda a complexidade das relações internacionais foi reduzida a uma briga de pátio de escola — só que o pátio agora é digital e as consequências são terrivelmente reais.

Tenho certeza de que o analista de Allen diria que isso tudo é uma manifestação do nosso medo coletivo da irrelevância. Musk comprando o Twitter como quem compra uma bagel na esquina. A primeira-dama ofendendo com um palavrão como quem responde a uma provocação num estádio de futebol. Todos nós, assistindo a esse espetáculo através de nossas pequenas telas, nos sentindo simultaneamente conectados e completamente sozinhos.

Se Allen fosse fazer um filme sobre isso — o que, graças a Deus, não está fazendo —, seria uma comédia sobre como a humanidade terceirizou suas neuroses para as redes sociais. O protagonista seria um psicanalista especializado em tratar pessoas viciadas em Twitter, que acabaria descobrindo que seu próprio analista é um bot criado por Musk.

No final, talvez o que a ilustre senhora e Musk precisem não seja de um embate público, mas de uma conversa sincera, cara a cara. Preferencialmente, sem seus celulares por perto, embora, conhecendo a natureza humana como Allen conhece, provavelmente eles tuitariam sobre a experiência antes mesmo de saírem da sala.

É o Brasil que inaugura, anualmente, a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Exceto nos anos de chumbo da Guerra Fria, entre 1987 e 1988, quando Ronald Reagan tomou a dianteira, coube ao nosso país proferir as primeiras palavras no maior foro da diplomacia internacional.

Desde 1947, com Oswaldo Aranha, inúmeros representantes brasileiros, das mais diversas orientações políticas, alternaram-se na tribuna do Plenário. E coube a eles honrar o legado de Rio Branco e a tradição nacional nas relações multilaterais. O Brasil é um construtor nato de pontes. E pontes são feitas a partir de fundações sólidas, não de falas efêmeras, impensadas e despropositadas. Poderia ser cena de filme, porém, foi passada no palco da vida real.

Mas voltemos a Allen. A sessão termina. Manhattan vai ganhando as cores do sol que se põe no horizonte. E o analista avisa: "O tempo acabou". No que Allen responde: "Já não era sem tempo". O alívio não é duradouro: na próxima semana haverá nova sessão. Será necessário se recompor até lá. Na diplomacia brasileira, não há tempo a perder.

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