Vencedor do Goncourt acusado de “violação da intimidade” pelo romance agora premiado

Sobrevivente de massacre ocorrido durante a guerra civil argelina acusa Kamel Daoud de ter usado em Houris confissões feitas à sua mulher em contexto clínico. Já há duas queixas na justiça.

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Kamel Daoud no restaurante Drouant a celebrar a atribuição do Goncourt CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPA
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Saâda Arbane, que aos seis anos terá sido a única pessoa da sua família a sobreviver ao massacre de Djelfa, um dos muitos que marcaram a guerra civil na Argélia (1992-2002), acusa o recente vencedor do Prémio Goncourt, Kamel Daoud, de ter usado no seu novo romance, Houris, uma história partilhada em contexto clínico com a mulher deste, Aicha Dehdouh, então psiquiatra, em violação do segredo médico.

Hoje com 31 anos, a mulher, que comunica com o auxílio de um aparelho – perdeu grande parte da voz na sequência da tentativa de degolação de que foi vítima quando criança, detalha o jornal Le Monde –, contou na quarta-feira passada, numa emissão do canal privado argelino One TV, que o romance agora premiado se baseia substancialmente nas confidências feitas à mulher do escritor franco-argelino de 2015 em diante. E sublinhou ainda ter declarado explicitamente à sua ex-terapeuta e ao autor não querer ver a história divulgada.

Um pedido que, protesta agora, não terá sido respeitado, uma vez que a protagonista de Houris, Aube, encarna detalhes da sua vida que só a psiquiatra conheceria. "Há três anos, fui convidada pela senhora Daoud a tomar um café em casa [do casal], em Hasnaoui. Kamel Daoud perguntou-me então se poderia contar a minha história num romance, eu recusei. Mais tarde, a sua esposa disse-me que ele estava a escrever um livro e eu disse-lhe que não queria que girasse em torno da minha história. Ela respondeu-me: 'De todo. Estou aqui para te proteger'", relatou na televisão, não hesitando em acusar os Daoud de "violação da intimidade".

Reagindo às acusações já esta terça-feira, o editor de Daoud, Antoine Gallimard, veio garantir em comunicado que se o romance se inspira "em factos trágicos ocorridos na Argélia durante a guerra civil dos anos 1990, a sua intriga, as suas personagens e a sua heroína são puramente ficcionais". E enquadrou o depoimento de Saâda Arbane no contínuo de "violentas campanhas difamatórias orquestradas por certos meios de comunicação próximos de um regime cuja natureza ninguém ignora".

A Gallimard lembra o cancelamento a que Houris foi sujeito na Argélia – não só o livro se viu banido como a editora acabou impedida de participar no Salão do Livro de Argel, que terminou no sábado – para apontar que é agora a esposa do autor, alheia à escrita do romance, "a ser atingida na sua integridade profissional".

"Qualquer trabalho sobre uma memória ocultada está condenado a incomodar profundamente. Como o recorda Kamel Daoud, o crime não é escrever um romance mas calar uma tragédia", remata a nota da editora.

Saâda Arbane argumenta porém que o autor "desapossou uma vítima do terrorismo da sua história, da sua vida, contra a sua vontade", reavivando um "trauma" que lhe levou "mais de 25 anos a esquecer" e "remexendo numa ferida" que lhe competiria apenas a ela curar. "Quando comecei a ler o livro, passei três dias sem dormir (...). Há 25 anos que escondo a minha história, que escondo o meu rosto, que recuso que me apontem o dedo. É horrível…", disse à One Tv, segundo a publicação online francesa Actualitté.

Contrariando veementemente a tese de que a heroína do romance é pura ficção, Arbane, que fez terapia com Aicha Dehdouh em Oran até à partida do casal Daoud para França, enumera as múltiplas coincidências que não acredita poderem ser fortuitas: "A minha cicatriz. A minha cânula. Os conflitos com a minha mãe. A operação a que eu deveria ter sido submetida em França, a pensão que recebo enquanto vítima [do terrorismo islamista]. O aborto, eu queria abortar. O significado das minhas tatuagens. O salão de cabeleireiro (...). O liceu Lotfi. A alusão romanceada à minha paixão pela equitação."

A narrativa de Houris desenrola-se em duas partes. Abre com um monólogo de Aube, de 26 anos, com uma cicatriz em forma de sorriso à volta do pescoço. Diz ao seu filho, ainda no ventre, que não o vai dar à luz “num país que lhe tirou tudo”. Depois, o solilóquio de um motorista que a obriga a entrar no seu carro quando ela queria sair de Oran a pé. Numa viagem intensa, leva Aube à aldeia onde, numa noite, os grupos islâmicos "mataram e cortaram gargantas".

Duas queixas na justiça

Entretanto, esta quarta-feira, a agência France-Presse e o jornal Libération noticiaram que já chegaram à justiça argelina duas queixas contra Kamel Daoud e a sua esposa, uma em nome de Saâda Arbane e outra em nome da Organização National das Vítimas do Terrorismo.

A advogada Fatima Benbraham confirmou que a acção judicial remonta já ao mês de Agosto, tendo sido movida "alguns dias após a publicação do livro", e bem antes da atribuição do Prémio Goncourt ao livro visado. "Não quisemos falar do assunto, para que não se dissesse que queríamos perturbar a nomeação do autor ao prémio", declarou.

Kamel Daoud e Aicha Dehdouh são acusados dos crimes de violação do segredo médico, difamação das vítimas do terrorismo e violação da lei da reconciliação nacional, que proíbe quaisquer publicações sobre o período da guerra civil argelina.

O Le Monde dá conta de várias reacções que subscrevem a tese de perseguição política ao autor. Arezki Aït Larbi, director das edições Koukou, chancela argelina que também foi interditada do Salão do Livro de Argel, considerou na sua página de Facebook que as acusações configuram um "linchamento" que tem o ar de uma "operação encomendada". Ali Bensaad, professor no Instituto Francês de Geopolítica da Universidade Paris-VIII, diz-se por sua vez "profundamente enojado perante o ódio delirante" que se amotinou na Argélia contra Kamel Daoud. "Não é esse o debate que eu desejo no meu país. O ódio é um combustível cuja deflagração acaba por arrastar toda a gente. Condeno-o sem reservas", disse o académico, ressalvando as suas discordâncias com o posicionamento político do escritor galardoado com o Goncourt.

A Academia Goncourt não reagiu até ao momento à polémica em torno do vencedor anunciado a 4 de Novembro.

Notícia actualizada às 20h05 dando conta das acções judiciais contra Kamel Daoud e Aicha Dehdouh

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