Kamel Daoud recebe prémio Goncourt por romance proibido na Argélia

Houris, sobre a guerra civil argelina (1992-2002), valeu ao escritor e jornalista franco-argelino a sua distinção no prémio mais célebre da paisagem literária francesa.

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Com Houris, o escritor Kamel Daoud é o Prémio Goncourt 2024 CHRISTOPHE PETIT TESSON/EPa
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O escritor e jornalista franco-argelino faz a dobradinha no Goncourt, o mais prestigiado prémio literário francês. Depois de ter ganho, em 2015, o Goncourt para primeiro romance, graças a Meursault, Grande Investigação (até ao momento, a única obra do autor traduzida em português), Kamel Daoud voltou a ser galardoado, esta segunda-feira, por Houris, editado com o selo de uma das editoras mais bem cotadas do mercado literário francês e europeu, a Gallimard.

Proibido na Argélia – segundo o jornal francês Le Monde, provocou, inclusive, a exclusão da Gallimard da Feira do Livro de Argel –, Houris debruça-se sobre a chamada “década negra da Argélia”, ou seja, a guerra civil de 1992 a 2002 que opôs o Exército argelino e grupos islâmicos, provocando entre 60 mil e 200 mil mortos e milhares de desaparecidos. Na Argélia, é assunto em que não se pode tocar: um artigo da Carta para a Paz e a Reconciliação Nacional pune com prisão quem ousar evocar e referir-se às “feridas do drama nacional”.

Nascido em 1970 em Mesra, na Argélia, Kamel Daoud viveu de corpo presente este conflito armado, onde foram mortos pelo menos 70 jornalistas. Em 1994, com 24 anos, havia acabado de entrar para o jornal Quotidien d’Oran. Ele e os colegas foram enviados para o terreno para fazer a cobertura da guerra. “Instalou-se uma espécie de rotina terrível”, contou o escritor e jornalista ao Le Monde. “Sempre que havia um massacre, éramos enviados para entrevistar soldados e sobreviventes. À distância, vimos as bombas. De perto, uma guerra é muito silêncio. Vamos para casa, escrevemos o artigo e embebedamo-nos.”

Com um conhecimento enciclopédico e na primeira pessoa da guerra civil, Daoud, actualmente a viver em Paris, não recorre a grandes subterfúgios para falar sobre os horrores escondidos deste acontecimento. Alguns leitores, refere o Le Monde, consideram o romance “insuportavelmente violento” – ainda assim, o autor retirou “várias cenas de massacre”.

A narrativa de Houris desenrola-se em duas partes. Abre com um monólogo de Aube, de 26 anos, com uma cicatriz em forma de sorriso à volta do pescoço. Diz ao seu filho, ainda no ventre, que não o vai dar à luz “num país que lhe tirou tudo”. Depois, o solilóquio de um motorista que a obriga a entrar no seu carro quando ela queria sair de Oran a pé. Numa viagem intensa, leva Aube à aldeia onde, numa noite, os grupos islâmicos "mataram e cortaram gargantas".

Anunciado como favorito há várias semanas, Houris sucede ao romance Veiller sur Elle, do escritor, cineasta e argumentista Jean-Baptiste Andrea. O anúncio do Prémio Goncourt 2024 foi feito, como é habitual, no restaurante parisiense Drouant. A concurso estavam também Madelaine Avant l'Aube, de Sandrine Collette, Jacaranda, de Gaël Faye, e Archipels, de Hélène Gaudy. Comunicado no mesmo local, e na sequência do Goncourt, o Prémio Renaudot foi atribuído a Gaël Faye (n. 1982), escritor e rapper que fugiu da guerra civil do Burundi para França aos 13 anos, pelo romance Jacaranda (ed. Grasset), que se passa no Ruanda.

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