O que é que queres provar?

Penso no que aconteceria se juntássemos os tecidos dos nossos corpos, se enxertássemos partes das histórias de uns na vida dos outros, como se faz com as plantas.

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"Oiço o som da marcha do pelotão que corre atrás de mim" Daniel Reche/pexels
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São 8h e o sol espreita por detrás das árvores do Parque de Monsanto, em Lisboa. A seus pés, a cidade levanta-se apressada, grita com buzinadelas estridentes, ignorando a pequena floresta imperturbável cá em cima, que teima em permanecer noutro tempo, como se não pertencesse ali. Como um pulmão que não sabe que pertence ao corpo, mas que o faz viver.

Estou no parque, entre as centenas de pessoas que vão participar na prova, no trail. Em breve um ecrã digital dará o sinal de partida. Encosto-me ao tronco de uma árvore recém-plantada, e reparo que tem um enxerto na ponta dos ramos. Saltito expectante para aquecer.

Trouxe os meus “ténis” de corrida novinhos em folha: o primeiro erro de uma principiante de trilhos. Logo nos primeiros dois quilómetros, os meus dedos grandes lutarão obstinados e volumosos contra as costuras das sapatilhas, como dois lutadores de sumo com uma crise de claustrofobia.

Comecei a correr há alguns anos, já muito depois da idade adulta. O meu gosto por atletismo chegou fora de horas, com a mesma falta de pontualidade com que descobri os benefícios de uma boa sesta, ou de um uísque japonês depois de uma refeição pesada. Iniciei a prática de desporto desfasada, como quem chega atrasada ao cinema e, ainda assim, insiste em entrar: às pisadelas dos pés das outras pessoas, a tentar acompanhar o desenrolar da ação que já vai a meio.

Como boa praticante da falta de bom senso, atirei-me de cabeça, sem moderação nem equilíbrio, a experimentar várias modalidades convictamente, para compensar o tempo perdido, a tentar decifrar um universo desconhecido, qual Carl Sagan, diante da vastidão dos aparelhos de ginásio, das barras do crossfit, da língua extraterrestre da gíria da nutrição saudável.

Movia-me como uma astronauta de fato enchumaçado, a lutar contra o peso da gravidade, contra a minha flexibilidade obstipada, a coordenação enganosa, a lombar caprichosa. Tornei-me uma discípula pontual e esforçada do desporto, frequentando as mais variadas aulas de fitness, não necessariamente com graciosidade ou elegância atlética — mais com a discrição de um monge desastrado que pisa a sua própria batina e derruba o sino à entrada de todas as sessões de meditação.

Esta é a minha primeira prova de atletismo.

"Uma prova? O que é que queres provar?", perguntaram-me os meus amigos trocistas na noite anterior, provocando-me carinhosamente, enquanto eu pedia uma cerveja sem álcool (o pecado capital entre boémios) para me mostrar comprometida com a missão. "A corrida beneficia o sistema cardiorrespiratório e a circulação do sangue. A prática regular fortalece o coração e torna-o mais eficiente", r​espondi, competente, técnica, a plagiar o Google.

A contagem decrescente anuncia a descolagem. Confiro o chip de localização no meu tornozelo. Trago um dorsal com um número que exibo orgulhosa como um cavalo em quem ninguém apostaria. Um zumbido irritante cochicha no meu ouvido… Uma melga prepara-se para entrar comigo na competição e eu não trouxe repelente.

O que é que queres provar?

Soa o sinal da partida e arranco! Explosiva. Com os pés a servirem de propulsor, a toda a velocidade — uma velocidade que jamais conseguirei manter, só preciso dela para arrancar, para entrar em órbita, para sair da atmosfera da cidade. A melga dispara, faz-se à pista comigo.

O que é que queres provar?

Sacudo-a. Distancio-me. Incapaz de acompanhar os que seguem na dianteira, ultrapasso os que se arrastam na retaguarda. Rasgo o caminho, solitária, na subida íngreme. Sinto as folhas da vegetação a rasparem-me a pele, como unhas que simultaneamente magoam e acariciam: a distância ininteligível entre prazer e dor. Sinto a língua seca. Tenho uma garrafa de água dobrável, tenho um ponto de hidratação, mas não quero parar. Não quero ser como aquelas operações espaciais falhadas que nunca chegam a sair da estratosfera. Não quero ser o Challenger a desintegrar-se em mil pedacinhos de fumo. Não me quero desintegrar. O que é que eu quero provar?

A melga segue-me entre a vegetação. Com os seus olhos de piloto experiente em terrenos irregulares aponta o cockpit aos meus calções de licra. Zás! Aterra em cheio entre a minha nádega esquerda e o posterior da coxa. Uma erupção explosiva cresce de imediato, atiçada pelo suor que entretanto os milhares de glândulas sudoríparas se encarregaram de produzir.

Enquanto a melga esfrega as patas deliciada, a palma da minha mão vingadora aterra como um meteorito atingindo-a mortalmente. Para toda a eternidade aquela melga deixará de existir. Tenho dez quilómetros pela frente e já provoquei um evento fatal. Engulo a culpa diluída na saliva espessa, engulo a grandeza com que nos divinizamos perante os seres pequenos. Penso na minha pequenez: vista de um satélite no espaço, sou um ser minúsculo e ínfimo que corre sujeito a uma palmada da imensidão do cosmos.

Sinto o atrito entre a sola dos pés e a estrada, entre as minhas coxas que roçam, entre o tecido da camisola e o peito, entre o peito e a cabeça. O atrito entre as coisas que quero lembrar e as que prefiro deixar para trás. Algumas memórias chegam desfasadas. Vêm de um tempo que não pertence aqui. A tua imagem aparece como um inquilino desobediente que insiste em ocupar os meus pensamentos mesmo depois de uma ordem de despejo. Mesmo depois de eu ter mudado de casa, de ter mudado de corpo, de ter fortalecido os músculos de onde nascem as decisões, firmes, sem flacidez, nem moleza, de ter fortalecido os quadríceps de onde só pode nascer o movimento para diante. É impossível correr para trás. É impossível correr para trás? Tropeço na dúvida, os pés derrapam na minha coordenação enganosa. Recupero.

Lembro-me de ter lido que o coração dos astronautas mirra quando estão no espaço. O volume do coração de um astronauta da NASA diminuiu 27% depois de um ano na estação espacial. Fora da Terra, sem gravidade, o coração encolhe.

O meu coração é barulhento. Já corri nove quilómetros e o meu sistema cardiorrespiratório começa a dar um ar da sua graça. À minha frente, o trilho estende-se entre a florestação densa. Volto às pernas de criança. De quando corria entre o bosque perto da minha casa sem ser preciso esforço: como se o futuro fosse tão grande que tinha a força de um campo magnético, capaz de atrair o corpo como se nenhum movimento provocasse cansaço. Como se não existisse atrito. Nem tempo. Só voo. Corro. Esqueço-me dos pés, da anca, das queixas na lombar, dos dedos queimados nas sapatilhas. Pode ser que tenha perdido o corpo num canto do parque, que alguém volte para o recuperar…

Oiço o som da marcha do pelotão que corre atrás de mim. Aproximam-se. Atraso o passo e deixo-me engolir na massa de gente. Fico submersa numa procissão de cabeças e pescoços, quadris ferozes e pulmões ofegantes. Avançamos como um bando de pássaros.

Fico a imaginar que filme se passará em cada um deles, que ação se desenrola nos pequenos ecrãs que trazem nos olhos? Que enredos, crimes, amores, fantasias, tragédias, arrependimentos, desejos, lutos e lutas lhes circulam no sangue? Penso no que aconteceria se juntássemos os tecidos dos nossos corpos, se enxertássemos partes das histórias de uns na vida dos outros, como se faz com as plantas. O que aconteceria se enxertasse memórias deles nas minhas?

Estou rodeada de pés. Corremos todos juntos, ao mesmo ritmo. Ao mesmo ritmo a que lá em baixo, na marginal, uma mulher corre para o elétrico, um namorado corre para travar a rapariga que quer romper o amor, que um cão vadio corre para se salvar dos carros, que um carteirista corre entre os prédios a fugir da polícia, que um peixe segue na corrente do rio. Por um momento, corremos juntos, como sangue a circular no mesmo corpo, sem saber que o faz viver. Corremos todos: os que conheço e os que desconheço, os presentes e os ausentes, os que estão e os que partiram — que deixaram o corpo para trás. A corrida leva-nos.

Vejo a meta lá ao fundo. Uma moldura vazia que anuncia o fim. Não sei o que acontece depois de passar a meta. O fim é sempre tão cheio de dúvidas. Talvez abrande… Talvez levante voo… Talvez prove o sabor de uma vitória secreta. Não sei o que quero provar.

Sei que um coração sozinho, longe dos outros, corre o risco de encolher. Por isso corro. Para fortalecer o coração.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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