O Coração Ainda Bate. O carrossel imparável

Inês Meneses escreve sobre escolhas em tempos sem critério.

A Joana e a minha filha, concluo, são muito parecidas. A Joana tem quarenta anos, a minha filha dezasseis. São ambas filhas únicas e muito discretas. Têm as suas fragilidades, mas, ao recuarem na exposição gratuita, ganham força.

Poucas vezes houve em que, tendo pedido à minha filha para a fotografar, ela acedesse. Podia querer ter um lugar, na minha pequena escala de visibilidade, que a seduzisse. Nada. Em vez disso, avalia os meus critérios e das poucas vezes em que ousei mostrá-la foi perante uma negociação árdua e que me levou a repensar valores. A minha filha sente um quase desprezo por essa visibilidade. Na sua timidez, constrói o seu mundo particular. Já eu, neste caminho de quem viveu os anos oitenta e se deslumbrou com o advento da Internet, sucumbi a uma certa visibilidade. Não dou a cara por nenhum creme que não use. Aliás, nunca vesti nenhuma camisola se não a minha. Repugna-me a facilidade com que as pessoas se vendem por um paladar que rejeitam, mas temo que seja eu a estar errada.

As pessoas vivem, cada vez mais, sem discernir. Engolem sem saborear. Não distinguem a necessidade da gula. E isso inquina tudo. Como poderemos avaliar o que quer que seja, se confundimos prioridades? Se a carência atrai o folclore? Já ninguém quer saber do original ou da cópia. Vamos todos na mesma enxurrada. A abundância não permite o critério.

A minha filha escolhe. Identifica. Reconhece-se. A Joana também. Escuda-se na sua timidez e recua perante o fogo-de-artifício. “Não queres?” Ela diz que não. Mesmo que seja tentada por isto e por aquilo. Somos todos, mas uns não aguentam a oferta. É isso. Nós estamos numa era maldita em que não aguentamos a oferta. Sucumbimos. É uma fraqueza que nem sempre identificamos.

Não sei se aqui, neste espaço, já falei do meu apreço pela cantora Sade. Já falei muitas vezes da minha devoção por ela. Até do tempo em que não era cool gostar da sua música. Em que eu parecia antiga por gostar de uma coisa que teve os seus dias. Depois disso, até quem não a viveu passou a admirá-la e ela mantém-se actualmente como uma musa ímpar, sem mácula.

O que é aconteceu a essa mulher enigmática, talentosa e bonita (na mesma proporção) para emergir numa altura de fogo-de-artifício? Soube retirar-se e essa talvez seja a maior e melhor lição que preservo, sem que necessariamente a pratique (ainda). Sade foi disruptiva na década de oitenta aparecendo como a mulher que se escudava na sua voz e elegância sem nunca querer ofuscar ninguém. E nós sabemos como os anos oitenta foram um carrossel de cor e euforia. Sade recuava quando outros teimavam em furar. E, depois de conquistar milhões com a sua elegância, retirou-se mesmo. Teve um, dois desgostos de amor. Não foi amada na proporção do que deu, mas depois da maternidade, e de avaliar o custo de aparecer e do preço que isso lhe trazia, desapareceu. Há dias apareceu com uma nova canção, pedindo desculpas ao filho por não o ter compreendido na transição de sexo. Este pormenor não é, neste caso, relevante para a mensagem que gostava que ficasse. Quando estou triste e sem rumo vou ver fotografias e ouvir as canções de Sade. É uma bússola. Uma coisa sem tempo que me lembra do essencial. A escolha em detrimento da falsa abundância.

Eu sei que é preciso cautela quando falamos de abundância, porque há quem nunca a tenha conhecido. Mas a abundância transtorna-nos. Amaldiçoa a escolha. Eu quero lutar apenas pelo essencial.

Olho para a minha filha e para a Joana. A Joana podia ser mãe dela. São, acredito, criteriosas na escolha, com erros já no percurso. Até no da minha filha, que ainda agora começou. Ambas dizem-me que não querem ver-se expostas. Admiro-as nessa capacidade de dizer que não. Também não me penitencio por escolher dizer que sim àquilo em que acredito. São caminhos válidos. Mas não cedemos. Não trocamos a nossa integridade por um cupão com bebidas grátis.

As três gostamos de Sade.

O coração ainda bate.

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