Existe uma franja de consumidores urbanos que anda meio enjoada com certo perfil de vinhos padrão que circulam por todas as regiões vitícolas e que, por isso mesmo, agarra-se com facilidade ao conceito de bebida da moda, seja ela uma coisa trendy (kombucha ou low-alcohol), um regresso ao passado (vinhos naturais) ou algo que tenha uma boa história para contar.
Ora, os vinhos de talha caem que nem ginjas nestes novos tempos. Não apenas porque são considerados vinhos menos interventivos, mas porque, por um lado, existe uma mudança de perfil de vinho de talha (por causa da qualidade das uvas) e, por outro, porque o vinho de talha é muito mais do que um vinho: é uma festa que deve ser vivida nas adegas onde estão as talhas — cheias de alentejanos — e não nos restaurantes de Lisboa, do Porto ou até mesmo do Alentejo. A festa e o convívio valem por todos os tratados de enologia que possam esmiuçar o vinho. E, claro, é uma festa muito instagramável.
Nós, que andamos cá há muito tempo, já vimos a procissão sair e regressar à igreja dezenas de vezes. Quando começou o movimento de ressurreição das talhas, já lá vão quase 20 anos, todo o sector fora de Vila de Frades torceu o nariz à coisa. Que não fazia sentido, que era perda de tempo, que era um retrocesso, que não ia pegar e que os vinhos seriam sempre acéticos, oxidados e tal. Hoje, só ainda não nasceu um vinho de talha no Pico (e, daí, nunca fiando).
A mundialização (ao nível da produção e do consumo) transformou o vinho numa bebida corrente, acessível a toda a gente e — a parte ruim da coisa — padronizada. Por mais que queiramos valorizar o conceito de denominação de origem protegida (e temos de continuar a fazer isso, que não haja dúvidas), a verdade é que a tecnologia de acesso mundial e o comportamento dos consumidores de mercados não tradicionalmente produtores transformaram o vinho numa bebida standard. Sim, temos muitas castas, regiões e tradições, mas, para o grosso do consumo (entradas de gama), o negócio impõe vinhos frutados, adocicados, alcoólicos e fáceis de beber, sejam eles feitos em Portugal, na Nova Zelândia ou na China. Vinhos que, convenhamos, acabam por enjoar.
E que vinhos portugueses nos podem desenjoar? Os vinhos de talha, por exemplo, que, já agora, são vinhos feitos com regras e certificados. O vinho de talha resulta de massas que fermentaram e ficaram nas talhas até ao dia 11 de Novembro, com poucas ou nenhumas manipulações enológicas. Existe nas categorias branco, tinto e petroleiro (mistura de uvas brancas e tintas). Embora se faça um pouco por todo o Alentejo, é nas regiões da Vidigueira, Cuba e Alvito que se concentram as tradições.
O vinho de talha (não confundir com vinho de ânfora) é feito hoje como se fazia há centenas ou milhares de anos, mas, a qualidade dos actuais vinhos e a sua duração no tempo é outra conversa. O que é que mudou? Um detalhe: a qualidade das uvas. Se, em modo convencional, foram as uvas que mudaram sobremaneira a qualidade dos vinhos, também com os vinhos de talha aconteceu o mesmo. O que significa que se tivermos uvas sãs a entrar nas talhas, é certo que — havendo cuidados no controlo da fermentação e das temperaturas — não teremos vinhos desequilibrados ou vinhos com acidez volátil a galopar.
Sim, os vinhos de talha têm sempre aromas e sabores peculiares, resultantes da talha em si e do facto de esta ser mais, menos ou nada pesgada (interior revestido com resina de pinheiro e cera de abelha), mas essa é que é a beleza da coisa: a diferença perante os vinhos convencionais.
Um vinho de talha não é um vinho do outro mundo, longe disso, mas pode reconciliar-nos com o mundo padronizado do vinho por nos dar prazer e nos dar festa. E é aqui que está a sua outra virtude: o seu carácter convivial.
A beleza do vinho de talha está em ser bebido entre amigos nas adegas do Alentejo que, nesta altura, se transformam em mesas longas e fartas para receber gente que chega de todos os lados. Há quem diga que o vinho de talha só tem piada bebido desta forma. Nós não concordamos, mas que importa isso? O importante mesmo é a festa, o convívio com alentejanos (a receita mais eficaz contra a tristeza) e a prova de vinhos cujos estilos testemunham a arte e a alma do adegueiro, que aqui a figura do enólogo é uma piada.
Andar de adega em adega a provar vinhos em copos que fariam desmaiar os senhores da Riedl é um luxo e é uma reconciliação com a cultura do vinho, que tanta confusão faz a certas almas piedosas que fanaticamente nos querem impor a sua ideia de bem-estar físico e emocional, penalizando o consumo de vinho. Sim, pelo menos uma vez por ano, devíamos cirandar nas adegas de talhas no Alentejo. Em Cuba, Vidigueira, Alvito, mas também em Beja, Reguengos, Portalegre, Borba ou Cabeção, em Mora.
Por onde começar? Bom, diríamos que pela Vidigueira. Depois das cerimónias da abertura das talhas na semana passada há sempre festança nas adegas e nos restaurantes de Vila de Frades. Porta sim, porta sim.
Ainda na Vidigueira, temos esse clássico que é o Amphora Wine Day, uma ideia muito bem pensada e executada pela Herdade do Rocim. E porquê? Porque aqui podemos perceber que a cultura do vinho fermentado no barro é universal. Se em Vila de Frades, bebemos vinhos feitos com regras próprias e certificadas, na adega do Rocim, amanhã, das 14h às 19h (24,50 euros em venda antecipada e online, 29,50 no local), será possível provar vinhos de meia centena de produtores internacionais, assim como assistir a debates sobre a história e o perfil dos vinhos de talha ou vinhos de ânfora. Um luxo com muita comida à mistura.