A habitação, mais do que um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, é uma questão de dignidade e justiça social. No entanto, a crise habitacional que atravessamos, impulsionada pela especulação imobiliária, expõe a falência em cumprir o que a Constituição promete.
Os chamados “bairros sociais” foram transformados em espaços de exclusão, verdadeiros guetos urbanos que perpetuam desigualdades e estigmas, mas isto não é uma inevitabilidade. Viena prova que existe outro caminho.
A capital austríaca é frequentemente apontada como exemplo. Cerca de 60% dos seus habitantes vivem em habitação pública ou subsidiada. Não são guetos isolados, mas edifícios bem integrados na cidade, com qualidade arquitectónica e acesso igualitário a serviços, demonstrando que é possível combinar funcionalidade, dignidade e inclusão urbana.
O segredo de Viena está em não tratar a habitação pública como uma esmola exclusiva aos mais pobres. Em vez disso, é pensada como parte da infra-estrutura essencial da cidade, destinada a pessoas de diferentes rendimentos e profissões. É assim que se evitam guetos: misturando realidades sociais, ao invés de as segregar.
Outro elemento-chave é o planeamento urbano. Enquanto em muitas cidades europeias a habitação pública foi relegada para as periferias, em Viena esta faz parte do coração da cidade. Os projectos são distribuídos estrategicamente para garantir que todas as zonas oferecem diversidade social e oportunidades iguais. Não é uma questão apenas de localização, mas de acesso a transportes, escolas, comércio e cultura.
A qualidade também é inegociável. Desde os anos 1920, Viena tem investido em projectos arquitectónicos que não só respondem às necessidades habitacionais, mas também se destacam pelo design e funcionalidade. Exemplo disso é Karl-Marx-Hof, um dos maiores complexos habitacionais do mundo, que combina espaços de convivência, jardins, serviços comunitários e até uma piscina digna de um filme de Nanni Moretti. O objectivo nunca foi criar abrigos temporários, mas sim habitações desejáveis e de qualidade.
Por trás de tudo isto está um modelo financeiro sólido. Em Viena, os impostos sobre os lucros do mercado de arrendamento privado ajudam a financiar a construção e manutenção da habitação pública. Esta abordagem garante que o Estado não dependa de ciclos económicos para sustentar o sistema, ao mesmo tempo que regula o mercado privado, impedindo que a especulação imobiliária dite as regras do jogo.
Os resultados são evidentes. Em Viena, não há “bairros sociais”. Existem bairros, simplesmente. Não há estigmas associados à habitação pública porque ela é uma parte natural da vida urbana. Claro que a cidade enfrenta desafios, como a pressão crescente sobre o mercado imobiliário, mas a estrutura continua a resistir e a adaptar-se.
Comparar este modelo com outras cidades europeias é revelador. Em Lisboa, Paris, ou Londres, a habitação pública tem sido tratada como um problema a ser resolvido com o mínimo de esforço. Os bairros sociais estão frequentemente em zonas periféricas ou degradadas, longe do emprego, da cultura e dos serviços, perpetuando a exclusão. A falta de investimento no design e na integração urbana reforça o preconceito contra os seus habitantes.
A lição de Viena é clara: habitação pública não pode ser um sinónimo de exclusão ou de remendo temporário. É uma infra-estrutura essencial, como o transporte público ou a saúde. Exige visão política, planeamento estratégico e um compromisso com o longo prazo.
A forma como uma cidade trata a habitação pública reflecte os seus valores. Esta pode ser usada para unir ou para dividir, para criar igualdade ou para aprofundar desigualdades. O exemplo de Viena mostra que é possível fazer diferente. O que falta, na maioria dos casos, é vontade política.
No final, tudo se resume a uma escolha: queremos cidades onde todos têm lugar ou espaços reservados apenas para os que podem pagar o preço? A resposta define o tipo de sociedade em que ambicionamos viver.