A Noite na Biblioteca: Amanhecer

São páginas à espera de serem folheadas, histórias à espera de serem descobertas. Cada livro é uma conversa íntima, um diálogo que transcende o tempo e convida a refletir sobre a nossa jornada.

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Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira Nuno Seabra
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Do outro lado da janela, relva e árvores misturam-se sob uma luz fraca. O céu clareia lentamente, mas parece-me que dificilmente deixará de estar cinzento. Não se vê um raio de sol, mas, ainda assim, o dia nasceu.

— Na claridade do primeiro alvorecer, levantou-se. O céu está muito limpo, transparente até as últimas e pálidas estrelas —, diz José, recordando O Memorial do Convento.

— Também sonhei que seria um amanhecer assim, céu clarinho e sol a brilhar. Mas o céu não está limpo, caro Saramago.

— Meu amigo, além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu —, prossegue o Nobel da Literatura.

Comovo-me ao ouvir as palavras do meu escritor preferido, aquele que me fez sonhar em um dia ser escritor, ainda adolescente, ao ler Deste mundo e do outro.

— Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo —, declama, da varanda, Sophia de Mello Breyner Andresen, agitando O nome das coisas.

Não podia imaginar melhor companhia neste amanhecer. Junto as mãos para agradecer a José e Sophia e atiro-me à escrita.

Trouxe apenas um livro comigo para esta estadia na Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira: O Infinito num Junco. Eu sabia que este livro fazia parte do acervo desta biblioteca — Irene Vallejo entregou-mo pouco depois de eu aqui ter chegado —, mas o meu exemplar é especial. Foi o último presente da minha querida avó Lourdes e tem-me acompanhado em todas as minhas visitas às bibliotecas. O Infinito num Junco é uma viagem fascinante e emocionante pela história dos livros, explorando a invenção do livro na Antiguidade e o surgimento da sede de leitura e da escrita, como um renascer, um novo amanhecer a ser descoberto. Irene, inspirada pelo nascer do dia, partilha o seu processo:

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“Com cada livro volto ao ponto de partida e ao coração agitado de todas as primeiras vezes. Escrever é tentar descobrir o que escreveríamos se escrevêssemos, assim o expressa Marguerite Duras, passando do infinitivo para o condicional e depois para o conjuntivo, como se sentisse o chão a quebrar-se sobre os seus pés. No fundo, não é tão diferente de todas essas coisas que começamos a fazer antes de saber fazê-las: falar outra língua, conduzir, ser mãe. Viver. Depois de todas as agonias da dúvida, depois de esgotar os adiamentos e os álibis, numa tarde quente de julho enfrento a solidão da página em branco.”

É impossível sentirmo-nos sozinhos numa biblioteca. Mesmo vazia de gente viva e respirante, há sempre pessoas que vivem e que fazem soar as suas vozes, contando histórias e experiências, partilhando sentimentos e conhecimentos, relatando feitos de heróis e heroínas, e amores e desamores que, desde sempre, atravessam as relações humanas.

E sobre relações humanas, escreveu Sándor Márai um autêntico tratado chamado As velas ardem até ao fim. Li-o pela primeira vez há 17 anos; entretanto, reli-o mais duas ou três vezes.

— A sério? Gostaste assim tanto? —, pergunta Sándor.

— Sim. Da primeira vez que o li, aborreceu-me até metade. Estive prestes a abandonar-te, confesso, mas depois transformou-se num dos melhores livros que já li.

Sándor sorri.

— Ainda era noite. Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos. É o último segundo em que a profundidade e a altura, a luz e a escuridão, tanto universal como humana, ainda se tocam, em que os que dormem despertam em sobressalto dos seus sonhos pesados e angustiantes, os doentes suspiram de alívio, porque sentem que o inferno da noite acabou e dará lugar a um sofrimento mais ordenado; a luz e a regularidade do dia revela e separa tudo que no caos obscuro da noite era um desejo convulsivo, uma ansiedade secreta, uma paixão delirante. Os caçadores e os animais selvagens gostam desse momento. Já não é noite, mas ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos.

— Há um provérbio, árabe, creio, que diz que a hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer —, digo.

— É um momento misterioso. Os antigos, os pagãos celebraram-no nas profundezas da floresta, com devoção, com braços abertos e com o rosto virado para Oriente, naquela expectativa mágica, em que o homem, atado à matéria, anseia eternamente no coração e no mundo pelo momento da chegada da luz, ou seja, da razão e da compreensão. A noite ainda está viva no fundo da floresta: a noite e tudo que esta palavra significa, com a consciência da presa, do amor, do vaguear, do prazer de viver desinteressado e da luta pela sobrevivência. É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O sonho, o desejo, a vaidade, o egoísmo, a ira lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formámos e domesticámos em vão durante anos, às vezes, durante muito tempo... Às vezes, amanhece tão lentamente, como se o sol estivesse a apalpar com os seus tentáculos luminosos a sua presa, o mundo.

— Caro Márai, foi essa linguagem vívida e sensorial que me prendeu definitivamente ao livro. As nuances de luz e escuridão, os contrastes, a evocação dos sentidos, tudo isso faz-nos imergir por completo no cenário e na história.

Entretanto, o dia clareou. Três senhoras aproximam-se.

— Incomodamos? —, pergunta uma delas, segurando o tubo do aspirador.

— De forma alguma, ia agora mesmo para a sala de leitura.

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Entro na sala e subo a escada em caracol. Os meus passos ecoam na sala deserta. Da varanda, observo o mundo estendido à minha frente, inspeciono cada estante, cada mesa, cada livro em destaque, cada recanto. Fecho os olhos. Milhares de vozes de homens e mulheres, vozes alegres, tristes, entusiasmadas e angustiadas reverberam pelas paredes, compondo uma caótica sinfonia de narrativas. Abro os olhos. São páginas e mais páginas à espera de serem folheadas, histórias à espera de serem descobertas. Cada livro é uma conversa íntima, um diálogo que transcende o tempo e nos convida a refletir sobre a nossa própria jornada.

Na abertura, às 9h30, entram sete pessoas de seguida: um homem na casa dos 50 sentou-se num computador e acedeu ao site das finanças, um jovem rapaz dirigiu-se ao piso superior e outros três rapazes permaneceram cá em baixo. Curiosamente, só chegaram duas raparigas. As mulheres acordam mais tarde? E eis que entra outro homem, um pouco mais velho, que já vi por cá ontem ao fim do dia. Chega também outro rapaz, cuja cara me é familiar; foi dos últimos a sair ontem. E ainda outro homem na casa dos 40. E mais um, já de idade mais avançada, que se senta a ler o jornal. O senhor que, há pouco mais de dez horas, andou por aqui a arrumar as cadeiras também já está cá. Recolheu alguns livros e sentou-se em frente ao mesmo computador que utilizou ontem. Estou aqui há pouco mais de 16 horas e é engraçado perceber as repetições. Ocorre-me uma passagem do Livro de Eclesiastes, que cito de memória:

“Uma geração passa, e outra geração vem; mas a terra para sempre fica... O Sol sempre nasce, e o Sol se põe, e apressa-se para o lugar onde nasceu... O vento ronda ao sul, e volta a rondar ao norte; e o vento continuamente circula, e o vento volta de novo segundo os seus circuitos... Os rios correm para o mar; e o mar não transborda; ao lugar de onde os rios vieram, aí voltam mais uma vez.”

— Tudo acaba por repetir-se, e isso torna-se evidente nas vidas que cruzam este espaço —, digo em voz alta, enquanto escrevo a frase.

— É mais ou menos isso —, diz Tiziano Terzani. — E a propósito, em Shiddhartha, Hermann Hesse fala-nos do príncipe, que em breve se tornará Buda, o Iluminado, e que está sentado na margem do rio quando compreende que, sem a medida do tempo, o passado e o futuro estão sempre presentes, tal como o rio está ali, onde é visível, mas ao mesmo tempo também está na nascente e na foz. A água que ainda há-de passar é o amanhã, mas já lá está a montante; a que já correu é o ontem, mas ainda lá está, algures a jusante —, conclui Terzani, colocando o livro Disse-me um adivinho num dos poucos espaços livres da mesa que ocupo, onde as pilhas de livros formam uma muralha.

Paro de escrever para olhar em redor e refletir um pouco sobre o tempo, o presente, o passado e o futuro. A reflexão dura pouco. É no presente que preciso de estar agora. São 9h50, e há 26 pessoas na sala de leitura. Desligo o computador e apresso-me a lavar as mãos para tomar o pequeno-almoço, uma gentileza que Mónica Gomes, a diretora da biblioteca, preparou para mim e para os meus companheiros desta longa noite, e que inclui, naturalmente, a típica Fogaça de Santa Maria da Feira.

— Se a vida não tivesse coisas tão boas como comer e descansar, não valia a pena construir conventos —, diz José, levantando-se para me acompanhar.

— Bibliotecas, neste caso, caro Saramago.

Mónica faz as honras da casa. Parte as ameias do castelo da Fogaça à mão, como manda a tradição, e serve-as aos convidados. Ponto final na escrita. Nem só de livros se alimenta um homem. ​

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