A noite na biblioteca: Madrugada

A minha pilha de livros cresce enquanto luto contra o sono. Ouço passos e vejo o senhor Simão, que já trocou o turno com o senhor Joaquim, abrir a porta ao detetive William Somerset.

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— Noite fora, perco-me ou encontro-me? —, pergunta Armando Pinheiro.

— Não sei. Não trago expectativas; vou aceitar o que a noite me trouxer —, respondo, observando a chuva forte pela janela.

— E agora a noite e eu sem dar por ela. Ainda há um minuto, se tanto, estava aqui muito bem sentada e era dia, o merceeiro aberto, um homem a brincar com o cão, metade da rua (a metade de lá) ao sol —, intervém António Lobo Antunes, tão lúcido como sempre será.

— Estava mesmo a pensar que anoiteceu sem eu quase dar por isso, caro António.

— Já leste a crónica À noite os sons? —, pergunta o escritor.

— Por acaso não.

— Lê! Tem tudo a ver com o que estás aqui a fazer. E olha, ouve o que a noite te diz.

Folheio o livro até encontrar a crónica e peço ao autor que a leia. Lobo Antunes anui: “À noite os sons, ainda que longe, parecem tão perto de nós: um cão, no horizonte, mesmo aqui ao lado, a queda do galho de uma árvore, a respiração da terra. A água no fundo do poço que não se aquieta, não se aquieta. O choro de uma criança, na rua de baixo, junto ao meu ouvido.”

— Maravilhoso! —, exulta Haruki Murakami, entregando-me um exemplar de After Dark - Os Passageiros da Noite. — Assinalei uma página que talvez te interesse —, acrescenta o escritor japonês.

Leio-a: “Através dos olhos de uma ave noturna que voa alto no céu, observamos a paisagem urbana. Dessa perspetiva, a cidade tem o aspeto de uma gigantesca criatura, de uma única entidade coletiva formada por organismos vivos. As partes do seu corpo cintilam, incendeiam-se e oscilam ao ritmo do bater do coração. Aproxima-se a meia-noite, o ponto alto da sua atividade já passou, mas o metabolismo vital que assegura a vida continua a trabalhar incessantemente, produzindo o basso contínuo que reproduz os murmúrios da cidade, um som monótono, sem altos nem baixos, se bem que prenhe de pressentimentos (…) Pouco falta para ser outro dia.”

A minha pilha de livros cresce enquanto luto contra o sono. Ouço passos e vejo o senhor Simão, que já trocou o turno com o senhor Joaquim, abrir a porta ao detetive William Somerset, que entra de gabardine e chapéu.

— Venho só fazer umas consultas —, diz Somerset.

— Senta-te onde quiseres —, responde o senhor Simão.

O detetive cumprimenta-me com um aceno de cabeça e segue caminho, falando para os seguranças que se encontram no piso superior:

— Como estão todos?

— Olá, Smiley —, respondem em coro.

— George, as cartas estão à espera! —, reclama, impaciente, um dos seguranças.

— O dever chama-me —, desculpa-se outro dos seguranças, afastando-se do detetive.

— Cavalheiros, cavalheiros! Nunca hei-de perceber. Tantos livros, um universo de conhecimento tão perto, e o que fazem vocês? Jogam póquer a noite inteira —, repreende Somerset.

Começa a ouvir-se a Suite No. 3, Air on the G String, de Bach.

— Isto não é cultura? —, pergunta um dos seguranças.

— Certamente que sim, mas podiam aproveitar para aprender algo de novo! —, exclamo.

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Os seguranças fazem caretas e cerram os punhos, apontando os polegares para baixo. O detetive sorri. Virginia, António, Aruki e Armando também. A tertúlia promete. “A noite é escura e cheia de horrores.” Uma voz feminina sobrepõe-se à melodia de Bach. Todas as cabeças se voltam para observar Melissandre, a sacerdotisa vermelha de Asshai, que caminha na minha direção com um sorriso provocador. Na mão, traz a Guerra dos Tronos, de George R.R. Martin. “Longo e difícil é o caminho que do inferno conduz à luz”, riposta William Somerset, colocando o Paraíso Perdido, de John Milton, no topo da pilha de livros. “É tremendamente fácil a gente fazer-se forte de dia, mas de noite é outra coisa”, ironiza Ernest Hemingway, atirando O Sol Nasce Sempre (Fiesta) para cima da minha mesa, enquanto puxa uma cadeira para si e outra para Melissandre.

O detetive afasta-se para fotocopiar algumas páginas de A Divina Comédia de Dante. Aproximo-me para espreitar as folhas na calha da fotocopiadora: “Sete Pecados Mortais: Gula, Inveja, Preguiça, Luxúria, Orgulho, Ira e Avareza; para que o Universo sentisse amor, pelo qual, como alguns acreditam, o mundo foi muitas vezes transformado num caos. E, nesse momento, esta antiga rocha, aqui e noutros lugares, caiu em pedaços.”

O tema é pesado para a madrugada, devia encontrar uma leitura mais leve. Isabel Allende acena-me do topo da escadaria em caracol, fazendo menção de deixar cair A Soma dos Dias. Aproximo-me em passo rápido e junto as mãos para o apanhar. Abro uma página selecionada pela autora: “Atirar-me a outro livro é tão sério como me apaixonar, um simples impulso aloucado que exige dedicação fanática. Com cada um, como diante de um novo amor, eu me pergunto se terei forças para escrevê-lo e se por acaso semelhante projeto vale a pena: há páginas inúteis em excesso, assim como amores frustrados. Antes mergulhava na escrita — e no amor — com a temeridade de quem ignora os riscos, mas agora, várias semanas transcorrem antes de eu perder o respeito pela tela em branco do computador. Que tipo de livro será este? Poderei chegar até o fim?”

Volto a olhar para Isabel, que permanece no topo da escada.

— Obrigado! —, digo.

— De nada. Nas nossas histórias não há finais perfeitos. Cada um faz o melhor que pode. Isso é tudo —, remata Allende, citando A Soma dos Dias.

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Eis o mote perfeito para ir descansar um pouco. Deixo os escritores na sala de leitura e dirijo-me à sala infantil, que está a meia-luz, e posiciono um colchão encostado à estante onde se encontram os livros da coleção Era Uma Vez… o Homem. As luzes já estão apagadas. Tiro aleatoriamente um exemplar e pouso-o à cabeceira, resistindo a descobrir que tema aborda. Estendo-me, fecho os olhos e tento pensar em coisas bonitas. Não é difícil; sou um afortunado pela vida que tive e que tenho. Todavia, por vezes, quando tudo em redor se apaga, o pensamento leva-me para lugares obscuros (quem nunca?) e questiono-me se estou no caminho certo, se estou onde devia estar, a fazer o que devo. Acho que toda a gente tem estas dúvidas de vez em quando. Se não as tem, deveria, digo eu. O maior desafio neste exercício é que as respostas nem sempre são as que gostaríamos de ouvir. “Noite fora, perco-me ou encontro-me?”, questiono-me, já a meio caminho para os braços de Morfeu.

Desperto de um sono profundo e sem sonhos. São cinco da manhã. Levanto-me, acendo o candeeiro e sento-me num cadeirão diante de uma enorme janela. Ainda está escuro lá fora, mas é aqui que vou assistir ao nascer do dia. Coloco o exemplar de Era Uma Vez… o Homem sobre as pernas e leio o título: O século das luzes. Folheio o livro e detenho-me no capítulo A primavera da razão: “Frequentemente, as pessoas não compreendem muitas coisas, nem sequer as mais simples, porque não as veem como realmente são. Nestes casos, costumam acreditar naqueles que lhes contam como o mundo é feito e lhes ensinam a como comportar-se na vida. Mas os que ‘conduzem’ o próximo, sabem mesmo como as coisas são, ou são também conduzidos por outros e assim sucessivamente? Podemos garantir, que não estão a defender os seus interesses próprios, quando orientam as outras pessoas? Os iluministas empregaram, como critério para conhecer a verdade, a sua própria razão, a única capaz de iluminar a escuridão do desconhecido e mostrar como o mundo é constituído. Perante um princípio moral, uma lei ou uma ordem, os iluministas exigem uma explicação racional, não se contentando com um porque sim! e ainda, muito menos, com imposições ou ameaças. (…) Em resumo, todos estavam convencidos de que cada pessoa tinha o direito de proclamar as suas próprias ideias e de discuti-las em público, sem medo de ser perseguida, como acontecera na história europeia dos séculos anteriores.”

Há escolhas feitas às escuras que acabam por se revelar muito frutíferas. Inspirado pelos iluministas, dirijo-me à sala de leitura dos adultos, ainda a tempo de ver o detetive William Somerset sair da biblioteca com um dossier debaixo do braço. Entro no corredor identificado como Literatura Estrangeira – Memórias, onde encontro Jung Chang, que me entrega o seu Cisnes Selvagens, um livro sobre a vida de três mulheres numa China em mudança, do início do século XX ao fim do comunismo. Despeço-me de Jung e, entusiasmado, regresso à sala infantil, onde pretendo aguardar pelo nascer do dia. A caminho do cadeirão, paro nos livros em destaque. Pego num: O Pássaro da Cabeça e mais versos para crianças, com poemas de Manuel António Pina e ilustrações de Ilda David. Levo-o comigo para o cadeirão e leio o poema A Ana quer. Partilho o trecho final:

“O que a Ana mais quer ser/ quando for grande e crescer/ é ser outra vez pequena:/ não ter nada que fazer/ senão ser pequena e crescer/ e de vez em quando nascer/ e voltar a desnascer.”

Quantos de nós, adultos, nos momentos mais complicados das nossas vidas, não desejámos já regressar à simplicidade e inocência da infância?

Liberto o pássaro e abraço os Cisnes Selvagens. Jung, sentada no outro cadeirão, pede-me o livro, abre-o no capítulo 28, Lutando por abrir as asas e voar, e começa a ler alguns trechos:

“A professora Lo tornou-se muito minha amiga. Dizia que via em mim o reflexo da sua própria juventude, cinquenta anos antes, quando também ela era irrequieta e impaciente, exigindo à vida a felicidade a que se julgava com direito. Nunca a encontrara, disse-me, mas queria que eu fosse bem-sucedida. (…) O rio da Seda corria serpenteando junto do campus, e passei muitas das minhas últimas noites a meditar nas suas margens. As águas brilhavam ao luar, cobertas pela leve névoa das noites de verão. Pensava nos meus vinte e seis anos. Tinha conhecido o privilégio e as denúncias, a coragem e o medo, tinha visto a bondade e a lealdade bem como as profundezas mais negras da alma humana. No meio do sofrimento, das ruínas e da morte, tinha sobretudo conhecido o amor e a indestrutível capacidade humana de sobreviver e procurar a felicidade. (…) À medida que ia deixando a China cada vez mais para trás, olhei pela janela e vi um imenso universo por baixo da asa prateada do avião. Lancei um último olhar à minha vida passada e depois voltei-me para o futuro. Estava ansiosa por abraçar o mundo.”

— Noite fora, perco-me ou encontro-me? —, insiste Armando Pinheiro.

— Continuo sem saber. E assim quero continuar.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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