O Império Contra-Ataca, ou como Donald Trump reconquista a Casa Branca

Hoje, Trump emerge das cinzas como uma fénix com um mandato para trazer mudanças transformacionais aos Estados Unidos.

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A perspicácia de Kellyanne Conway, manager de campanha de Donald Trump em 2016, ressoa mais uma vez: “para os eleitores, há uma diferença entre o que os ofende e o que os afecta, e os eleitores votam quase sempre no que os afecta.”

Donald Trump conseguiu o que parecia impensável há apenas dois anos, quando, na sequência das derrotas republicanas nas eleições intercalares, o seu poder político parecia estar a diminuir. Dois anos antes disso, muitos especialistas proclamaram que estava “acabado” após os acontecimentos de 6 de Janeiro. Desafiando as expectativas, Trump mostrou que a sua ligação única ao seu eleitorado é inabalável e dificilmente transferível.

Hoje, Trump emerge das cinzas como uma fénix com um mandato para trazer mudanças transformacionais aos Estados Unidos. Como é que ele conseguiu esta façanha?

It’s the economy, stupid! Será só isso?

Sim, é claro que o aperto económico sob o qual muitos americanos vivem moldou muitos votos. Contudo, estes factores económicos estão provavelmente profundamente interligados com outros factores. Por exemplo, Kamala Harris teve um desempenho inferior ao de Biden junto dos eleitores mais jovens que votaram fortemente à esquerda há quatro anos. Nos EUA pós-pandemia, é esta geração mais jovem que tem tido mais dificuldades em fazer face às despesas. A juventude, com ou sem diploma universitário, considerava o sonho americano de alcançar a independência económica quase inatingível neste período. Não têm condições para pagar renda, muito menos comprar uma casa, constituir família, ou fazer planos para o futuro.

Os jovens, em particular, parecem mais desiludidos ​​do que no passado. Muitos sentem que o Partido Democrático se desviou para um espaço ideológico onde não podem ter voz. Outros sentem repulsa pela política externa dos EUA sobretudo no conflito de Israel em Gaza. Donald Trump e JD Vance apostaram nesta anomia como activadora, sobretudo de homens, para os republicanos. E ainda aprofundaram os seus argumentos com uma dose de hiper-masculinidade. A estratégia deu frutos.

A lei das consequências inesperadas

Quando, há dois anos, os democratas conseguiram atenuar uma onda vermelha no Congresso, a grande conclusão foi que as mulheres foram decisivas. As mulheres de todo o país sinalizaram aos republicanos que discordavam da decisão do Supremo Tribunal que aboliu o direito constitucional ao aborto.

Mas, desde então, a política sobre o assunto progrediu. Muitos estados, incluindo os liderados por legislaturas conservadoras, têm agido no sentido de proteger o acesso ao direito ao aborto. Donald Trump demarcou-se da sua base evangélica nesta questão, prometendo que, enquanto Presidente, não votaria a proibição federal do aborto. A dupla Trump/Vance ofereceu uma estrutura permissiva para as mulheres votarem neles sem medo de perderem o acesso aos direitos básicos.

As sondagens à saída das urnas revelam uma potencial reacção religiosa ao forte posicionamento de Kamala Harris nesta questão. Embora o voto protestante (incluindo os evangélicos) se tenha mantido relativamente estável desde 2020, os católicos viraram-se contra os democratas em números surpreendentes. Se em 2020 cerca de 56% foram apoiantes de Biden, este número reverteu completamente a favor de Trump na noite passada. Eis uma leitura provável — embora não a única possível — destes resultados: os católicos reagiram à questão do aborto mudando em grande número para os republicanos. Esta oscilação do pêndulo pode explicar porque é que Harris conquistou margens muito mais pequenas de mulheres latinas do que Biden. A maioria dos latinos nos Estados Unidos são católicos [43%] e protestantes [15%].

A grande conclusão

É claro que as mulheres não são a única peça do puzzle, mas foi nelas que a campanha de Harris depositou as suas esperanças. No final do dia, Kamala Harris teve um desempenho inferior ao de Biden nas principais cidades por 2 a 3 pontos, enquanto Donald Trump conseguiu aumentar as suas margens nos condados vermelhos em mais de 3 pontos. Foi isso que conquistou estados como a Pensilvânia e o Wisconsin. De forma reveladora, Trump conseguiu aumentar as suas margens mesmo nos estados azuis. Estes resultados deverão gerar uma profunda reflexão dentro do Partido Democrático.

O regresso de Trump mostra que não é uma moda passageira. Eu diria que ele nem sequer é a causa deste ponto de inflexão, mas sim o seu produto e instrumento. As grandes mudanças estruturais e culturais na sociedade e economia americanas dos últimos 30 anos trouxeram-nos a este ponto. Onde nos levarão agora?

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