É a hegemonia, estúpido!
As ideias que levaram Trump ao poder e que grassam, já não como um fantasma, mas como a face histriónica do poder, estão em todo mundo e têm todas as condições para durar.
A vitória de Trump mostra como a extrema-direita se tem centrado, com êxito, no essencial: a conquista da hegemonia. Importa relembrar Antonio Gramsci, comunista italiano que, durante os longos anos de cárcere impostos por Mussolini, escreveu nos seus cadernos sobre a importância do maquiavelismo moderno na conquista e manutenção do poder. Não por acaso, Gramsci é lido com fervor (tantas voltas deve dar no túmulo!) pela ultradireita de França e Brasil como método cínico de cimentar coesão e consentimento em torno da revolução que realmente interessa: o senso comum. Através do controle de vastos setores da sociedade civil (associações de base comunitária, igrejas, movimentos sociais), mas também de uma parte considerável dos media e das redes e plataformas online (com o apoio bilionário dos grandes oligarcas), a direita mais radical percebeu com grande eficácia a importância de colocar os seus “intelectuais orgânicos” nas esferas de persuasão (incluindo os altos programadores dos algoritmos e da inteligência artificial) onde se formam as ideias-imagens-linguagens-gestos-performances da vida em comum. Com esse labor, definem os termos do pensável, isto é, o imaginário das práticas quotidianas comummente aceites sem questionamento.
Convém não ignorar que há uma base “material” e “objetiva” para esta lavra. Como tão bem demonstrou a socióloga/antropóloga Arlie Hochschild em 2016 (ano da primeira vitória do republicano), no seu livro sobre as bases sociais da vida quotidiana dos partidários do Tea Party (movimento que criou, pelas suas ideias conservadoras e carismáticas, a possibilidade Trump), estes acreditam num mito, numa narrativa, segundo a qual são preteridos na longa ascensão social do sonho americano pelas mulheres escolarizadas e pelas minorias. Esta “estória profunda”, como lhe chama Hochschild, sente-se como se fosse verdadeira, independentemente da sua não adesão aos factos, incrustando-se na estrutura afetiva de milhares e milhares de deserdados, esquecidos e preteridos por anos e anos de desinvestimento público, contenção orçamental, desindustrialização e retração dos serviços públicos e do Estado nas suas comunidades. Uma mentira atua como verdade desde que se acredite nela e os republicanos, através da sua “guerra de posições”, reverberaram no storytelling hegemónico aquilo que as condições materiais de existência permitiram.
A raiva e o ressentimento são o grau zero da política, mas oferecem-se como chão fértil para projetos de tomada de poder, em particular quando os “liberais” (nos EUA) e a esquerda (na Europa) pensam as diferenças de classe e de etnia como questões de caráter pessoal (e não de estrutura de oportunidades e de reconhecimento), o que impede níveis elevados de consciência coletiva e de partilha do bem comum.
Latinos e até mesmo alguns negros, especialmente homens, votaram em Trump por medo da desclassificação social. Sentindo-se vulneráveis, acreditam que os “maus imigrantes”, dos “países de merda”, lhes vão roubar o pouco que têm. É a velha oposição entre os que estão dentro do sistema, ainda que precários e estigmatizados, e os outsiders simbolizados pelo estrangeiro “ilegal”.
As ideias que levaram Trump ao poder e que grassam, já não como um fantasma, mas como a face histriónica do poder, estão em todo mundo e têm todas as condições para durar. Por isso, a esquerda tem hoje, pela clareza da disputa, uma oportunidade para fazer a sua própria “guerra de posições”, o que só se consegue com uma narrativa alternativa poderosa e partilhada e essa, decerto, não reside na multiplicação das diferenças individuais, mas sim, como a História ensina, num projeto em que o comum, a partilha e o coletivo sejam as palavras-chave.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico