Onésimo Teotónio Almeida: integrados, os portugueses nos EUA “pensam como republicanos”
Filósofo e escritor açoriano, Onésimo Teotónio Almeida aposentou-se há meses da carreira académica nos Estados Unidos. Entre lá e as suas ilhas, observa o risco de novo caos pós-eleitoral.
Concluiu há meses uma carreira académica de cinco décadas nos Estados Unidos. Lá voltará em breve. Por agora, Onésimo Teotónio Almeida assiste a partir dos seus Açores ao desenlace das eleições presidenciais norte-americanas. Diz que não perde um sono à prova de fenómenos telúricos e crê que as instituições sobreviverão a um possível regresso de Donald Trump, mas admite os riscos de um novo cenário de caos pós-eleitoral em Washington. Por email, o filósofo e escritor, ex-professor no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade Brown, condecorado duas vezes por Jorge Sampaio e Marcelo Rebelo de Sousa, e escolhido por este para presidir às cerimónias do Dia de Portugal em 2018, diz que Trump é porta-voz de um problema latente. E global.
Duas Américas muito diferentes podem sair das eleições de terça-feira. O que lhe dá esperança e o que lhe tira o sono?
Elas não “podem” sair agora. Já existem há muito, embora se tenham extremado nos últimos anos. Nos EUA e no mundo. Mas sempre se extremaram. Quando eu era jovem, a viragem era para a esquerda. Um professor meu, muito conservador, advertia-nos: olhem que a história é um pêndulo. Daqui a mais uns tempos, o pêndulo vai virar para o outro lado! O que nunca imaginei foi que os EUA fossem o grande líder dessa actual viragem do pêndulo.
A situação não me tira o sono porque durmo bem. Em jovem, até dormia pesadamente durante os abalos de terra açorianos, sem sentir nada, quando toda a gente fugia para a rua. Portanto, ainda durmo pesadamente. Mas logo de madrugada já estou desperto e atiro-me à leitura de notícias sobre a situação. O meu motor de busca já sabe que “Trump” é a palavra que mais teclo. Basta escrever "T" e vêm-me logo as últimas notícias sobre esse inominável.
A sociedade americana, onde consensos elementares sobre a democracia, a ciência, a verdade estão a desfazer-se rapidamente, sobreviveria a um segundo mandato de Trump?
Não convém exagerarmos. Há instituições com regras muito sólidas que se manterão, independentemente do que aconteça em Washington. A situação política não lhes é favorável, todavia, acredito que elas se oporão a qualquer atitude menos democrática da parte do Governo. Serão afectadas, é certo, sobretudo em matéria de fundos federais, muito importantes, principalmente, no domínio das ciências. Mas não vacilarão, qualquer que seja a tendência política em Washington. A autonomia, inclusive financeira, das universidades particulares e de muitas instituições em vários domínios é muito grande. Mesmo as universidades estaduais dependem dos orçamentos do estado a que pertencem, mais do que de Washington.
E se Harris ganhar? É um antídoto ou apenas comprámos tempo até à próxima crise?
O trumpismo não nasceu com Trump. Estava latente, e Trump ofereceu-se para seu porta-voz. Na Reforma protestante, Lutero e Calvino desempenharam papel semelhante. Estava latente o sentimento. O ser humano manifesta tendências instintivas básicas que têm resistido a alguns excessos do liberalismo (na Europa, equivalente a “esquerda”), e as redes sociais permitiram que eles emergissem e encontrassem um espertalhão (leia-se Trump) que, instintivamente, soube aproveitar as águas turvas. Prometeu secar o pântano e agora nada nele à vontade e impunemente.
Imagina um Partido Republicano pós-Trump?
Não tenho palavras para falar do Partido Republicano. Eram a gente da Law and Order e deixaram-se levar por um animal (eu sei que disse “animal”) sem princípios como Trump. Em tempos, o seu actual running mate, candidato a vice-presidente, J.D. Vance, apodou-o de “Hitler”. Trump não mudou. Ainda merece o cognome. Quem mudou foi Vance, ao aceitar juntar-se a tão infame figura.
E o que acontecerá à esquerda americana, quer Harris ganhe ou perca, depois desta aproximação do Partido Democrata ao centro para tentar travar Trump?
Está a fazer-me perguntas como se eu fosse um bruxo. Valho-me da famosa resposta de João Pinto: “Prognósticos, só no fim do jogo.” Os democratas não vão deixar de o ser. O meu receio é o caos que poderá rebentar. O 6 de Janeiro foi arquitectado por Trump (não estou a inventar; basta ler os dados disponibilizados pelo tribunal). O perigo de uma guerra civil não é apenas fruto de imaginações medricas. Imagine Trump a dar ordens, no sentido que ele tem proclamado abertamente ter intenção de pôr em prática, e uma fracção das tropas (há muitos militares de alta patente que se lhe opõem) não aceitar cumpri-las.
Já experimentámos quatro anos de isolacionismo e disrupção internacional com Trump e podemos repeti-lo agora. Que mundo teremos com uma América que abdica do seu lugar?
O problema é o exemplo que os EUA darão ao mundo, apoiando moralmente (e não só) os regimes ditatoriais. Trump não esconde nada e refere-os a toda a hora. Os líderes da Hungria, Rússia e Coreia de Norte são os seus grandes amigos. Não só eles terão apoio moral para continuarem (aconteceu assim no Brasil, por exemplo), mas Trump irá mais longe. Não é preciso ser bruxo para se perceber o que acontecerá à Ucrânia. Trump – dizem altas figuras da CIA – é um aliado de Putin. Estou apenas a citar o que leio em escritos de gente séria que se baseia em factos sólidos.
Como é que os portugueses nos EUA assistem a estas eleições e ao que poderá surgir depois?
Tradicionalmente, os portugueses eram do Partido Democrata porque era o partido dos católicos, da gente da mó de baixo, seguindo o exemplo dos emigrantes irlandeses, profundamente anti-establishement inglês e protestante. Na última década, um grande segmento tornou-se republicano, sobretudo por causa da hierarquia da Igreja Católica americana, que transformou o aborto em tema de clivagem. A Igreja Católica, na sua maioria, virou à direita e deixou de seguir a velha regra de não envolvimento político. Intervém descaradamente em favor de Trump, tal como as igrejas evangélicas. Mas o fenómeno é mais complexo, e não tenho espaço para aventar algumas possíveis explicações que tenho vindo a formular através de leituras e de contacto directo com as comunidades portuguesas. Uma delas, e muito importante, é o facto de hoje já não se tratar propriamente de uma comunidade imigrante, mas sim de uma comunidade integrada – e muito bem – economicamente. Quer dizer, pensam como republicanos.
Que lugar sente que tem nesta América e na que poderá surgir a seguir?
Tudo o que aqui disser apenas resumirá o que escrevi numas dezenas de páginas do meu livro Diálogos Lusitanos, que acabo de publicar em Lisboa (Quetzal). Mas nele não disse isto que vou acrescentar: em Maio, em colaboração com o embaixador de Portugal em Washington, Francisco Duarte Lopes, organizei uma sessão sobre o abade Corrêa da Serra no Cosmos Club, em Washington, para comemorar o segundo centenário da morte desse estrangeirado português que foi grande amigo do Presidente Thomas Jefferson. O abade decidiu deixar a França e visitar os EUA porque queria muito ver de perto uma sociedade nova que estava a nascer segundo os princípios e valores das Luzes que emanavam da Europa, sobretudo de França. Depois de oito anos nos EUA, o abade Corrêa da Serra resolveu regressar a Portugal, lamentando o facto de a América estar a tornar-se mais e mais como a Europa de que tanto queria fugir.
Pois eu aposentei-me há meses, depois de 52 anos de vivência no ambiente que sempre mais apreciei nos EUA – o das suas universidades, criadas sob inspiração do espírito que instituiu uma sociedade moderna, cheia de defeitos mas, ainda assim, apostando fortemente no fortalecimento das regras de jogo que permitiriam o funcionamento de uma sociedade democrática, aberta a todos.
Hoje sinto-me um pouco como o abade, tendo-me decidido a passar mais tempo em Portugal nos meus anos de aposentação. Não perdi a esperança, nem quero. Todavia, apercebo-me cada vez mais daquilo que defendi num livrinho de 2010 intitulado De Marx a Darwin. O lado animal do ser humano, hoje, está cada vez mais à solta, mesmo na América, que durante 250 anos nos fez acreditar que era possível controlar a besta obrigando-a a conviver civilizadamente. O problema não é meramente americano. É mundial. E é isso que me preocupa sobremaneira.