Guardar ou deixar ir: a escolha final de Antônio Cícero

É difícil admitir, mas tenho medo da morte. Medo da finitude, daquilo que não podemos controlar. Evito o assunto, como se, ao não tocá-lo, ele se mantivesse distante, nas sombras.

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Antônio Cícero, poeta, ensaísta e filósofo brasileiro, é uma das figuras mais marcantes da cultura contemporânea no Brasil. Com uma obra que transita entre a filosofia e a poesia, ele explorou questões como a memória, o tempo e o sentido da vida. Recentemente, ele tomou uma decisão que abalou muitos que o admiravam: escolheu encerrar sua própria jornada por meio da morte assistida.

Essa notícia me pegou desprevenido. Não pela morte em si — que já nos ronda sempre —, mas pela escolha. Saber que ele optou por esse fim trouxe um peso que me balançou profundamente, porque me vi diante de algo que evito: falar sobre a morte, pensar sobre ela. Esse tema que tanto me provoca temor, insegurança, incerteza.

É difícil admitir, mas tenho medo da morte. Medo da finitude, daquilo que não podemos controlar. Evito o assunto, como se, ao não tocá-lo, ele se mantivesse distante, nas sombras. E aí, de repente, Cícero não só enfrenta esse destino inevitável, como faz da morte uma escolha. Isso me abalou de forma intensa, porque eu jamais me imaginei no controle de algo tão grande, algo tão final.

Antônio Cícero sempre teve uma relação peculiar com a palavra, com o tempo. Em seu poema Guardar, ele fala sobre o ato de preservar o que é importante, de encontrar sentido na permanência das coisas. Mas, agora, ele decide não guardar mais — ao menos não a vida.

Guardei o poema com carinho:

Guardar uma coisa é olhá-la, fixá-la,

fotografá-la com cuidado.

Guardar uma coisa é vigiá-la,

é velar por ela, é também afastá-la.

Guardar uma coisa é escondê-la,

é também destacá-la em nosso peito.

Sempre pensei no "guardar" como uma forma de manter o que nos é precioso: memórias, pessoas, momentos. E Cícero, em vida, sempre soube guardar essas coisas com delicadeza e precisão. No entanto, com essa escolha, ele parece nos lembrar que há um momento em que também é preciso deixar ir, não "guardar" mais. E essa decisão dele me faz sentir uma espécie de vertigem, como se fosse algo que subverte toda a minha relação com a ideia de fim. A morte, para mim, é algo que chega, nunca algo que escolhemos.

E talvez seja isso que me assusta tanto. O deixar ir. O ato de não mais vigiar o que é precioso, de permitir que a vida siga seu curso até a ausência total de controle. Como alguém que se afasta das bordas do abismo, sempre temi olhar de frente para essa questão, preferindo fingir que ainda estou distante dela.

A escolha de Cícero me faz refletir sobre como enfrentamos a morte, ou melhor, como não a enfrentamos. Ele, que lidou tão bem com as palavras e as ideias, tomou uma decisão consciente que me faz questionar como eu, com todo o meu medo, posso um dia fazer as pazes com esse tema. Me pergunto se um dia terei a mesma coragem — ou se a coragem, no fundo, não está em continuar guardando o que temos até o fim inevitável.

Enquanto escrevo, percebo que falar sobre a morte me coloca mais próximo da vida. Cícero deixou um legado de pensamentos e reflexões e, mesmo ao escolher o seu fim, ele nos oferece uma última provocação: será que podemos, algum dia, nos libertar do medo de partir? Será que conseguimos transformar esse ato final em algo que, como o poema sugere, guardamos no peito de uma maneira que seja serena?

Por enquanto, eu ainda não sei. Mas escrever sobre isso, mesmo com a dor e o receio, é uma tentativa de guardar — guardar a memória de um poeta e suas ideias, enquanto enfrento o medo que ele me desperta.

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