Ter cancro não é uma epifania

Ter cancro é somente uma merda. Isto tem de ser dito. É uma merda. Nada mais a acrescentar. E ficava um título bem bonito para um livro sobre o tema: Ter cancro é uma merda.

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"Nem as más pessoas nem certamente as boas precisavam de uma lição de vida como um cancro" Kristina Paukshtite/pexels
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Recentemente Joana Gonçalves, numa entrevista a Manuel Luís Goucha na TVI, afirmou “não ter aprendido nada com o cancro e que o pensamento positivo não cura, mas sim a medicina, os médicos e o facto de a quimioterapia resultar”, concluindo que ter cancro “foi só sofrimento, horrível”.

Ao escutar a influencer, pensei para comigo mesma: “Finalmente, alguém com exposição mediática fala com realismo de cancro.” Oiço com muita atenção todos os depoimentos e partilhas de doentes que passaram ou passam pela experiência de ter essa doença e tento sempre respeitar as diversas opiniões, porque cada um e cada uma faz o melhor que pode, arranja as estratégias mais mirabolantes para aprender a lidar com o diagnóstico. Mas, ao ler os títulos romantizados dos livros de tantas vedetas, que felizmente sobrevivendo, ilustram ‘o ter cancro’ como uma espécie de redescoberta de si e dos outros, quase numa experiência etérea, extrassensorial, não posso deixar de ter uma visão totalmente oposta sobre o que significa ter cancro.

Ter cancro é somente uma merda. Isto tem de ser dito. É uma merda. Nada mais a acrescentar. E ficava um título bem bonito para um livro sobre o tema: Ter cancro é uma merda. Tudo o resto, são camuflagens que respeito, mas que não posso jamais corroborar.

Não nego, porém, que só uma atitude muito positiva e até bem-humorada, pode lidar, por exemplo, com aquilo que a minha amiga Cristiana enfrentou: ter sabido que tinha cancro na mesma semana em que a mãe também recebeu igual diagnóstico, num rastreio. “Mãe, acabei de saber que estou com o mesmo problema que tu”, recorda Cristiana, que não tem dúvidas em concluir que, apesar da ironia do destino, essa etapa lhe trouxe uma vontade de viver muito grande e a fez ver a vida de outra maneira (apreciar um pôr do sol ou dar uma caminhada no bosque). “Hoje eu sou mais feliz do que era antes”, diz, embora, assuma que não foi nada otimista durante o processo. Depois da primeira sessão da quimioterapia e já em casa, o marido de Cristiana teve de chamar o INEM. E aí, ela pensou: “Vou morrer.”

Sejamos, pois, francos, nem as más pessoas nem certamente as boas precisavam de uma lição de vida como um cancro para mudarem para melhor ou pior. É simplesmente um desastroso acaso da vida, que surge não para unir, nem para impulsionar cânticos à beira da fogueira ou hinos de louvor, mas para destruir, e entre os que observam de fora, só resistem os verdadeiros, os que amam incondicionalmente.

Para quem acredita em Deus, sobreviver pode ser uma questão de fé, mas nunca é uma questão de escolha, como se os e as infelizes que partiram tivessem desistido de viver. Quem fica, quem sobrevive, tem sobretudo sorte. Sorte de ter descoberto a tempo, sorte de o corpo ter reagido à quimioterapia, sorte de ter tido condições financeiras para poder estar tranquilo e dedicar-se de corpo e alma à sua própria cura e também tem de ter a sorte de ter um bom suporte familiar e de amizades que construam uma verdadeira rede de salvamento.

Neste mês, em que se sensibiliza para a prevenção do cancro da mama, falta falar com verdade. E neste sentido, apesar de adorar pessoas otimistas, partilhar uma fotografia de uma cirurgia a um tumor, no mesmo dia em que se é operada, legendando “curada”, é somente falsidade. Depois daquela intervenção cirúrgica, o tecido do tumor vai para análise e dará mais dados sobre os próximos passos. Depois da quimioterapia, se ela acontecer antes da operação, o processo pode não terminar nesta fase. E se falarmos do trauma que deixa na mulher, no homem, pela forma como a doença também expõe a pessoa que dela padece, pode demorar décadas a tratar aquela dor, aquelas marcas, ou talvez até conclua que nunca vai passar um dia em que não se lembre do que sentiu no corpo, do horror do diagnóstico, do rosto apavorado dos familiares ao receberem a notícia, de todas as mudanças, do medo das recidivas.

Porque um doente com cancro é um doente crónico, que vai passar a ser seguido, acompanhado, muito provavelmente para sempre, com vários exames como análises, ecografias, sempre a querer pensar noutra coisa, mas sempre a regressar àquela sala de espera, onde tanto estão os “curados”, como os que vivem o processo. Quando dois doentes com cancro trocam olhares numa sala de espera há uma cumplicidade silenciosa. Eu sei o que estás a passar. Lamento tanto!

O otimismo é uma questão de escolha, sobreviver ao cancro não é. Que se tenha noção da diferença e que se fale com mais verdade sobre cancro.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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